FLÁVIA DENISE

O terror do não visto

Redação O Tempo


Publicado em 27 de março de 2018 | 03:00
 
 
 
normal

Qual é o melhor, livro ou filme? A discussão está tão gasta quanto o dilema do ovo e da galinha, mas, ainda assim, ganha espaço sempre que é feita a adaptação de um bom livro para um filme.

Alguns aspectos do debate não mudam. Quando for feita a comparação, sempre se descobrirá que o livro é mais detalhado e o filme apresenta mal seus personagens. Por outro lado, as melhores descrições de cenas e cenários nunca chegarão aos pés da fotografia arrebatadora de um bom filme. E o tempo de consumo do livro, que obedece ao ritmo do leitor, será sempre mais lento do que o do filme, que impõe a compreensão a partir de uma experiência fixa, que pode ser vivida em grupo.

Mas existem adaptações que desafiam algumas dessas premissas. A recém-lançada “Aniquilação” (Netflix) é uma delas. O filme estrelado por Natalie Portman e dirigido por Alex Garland é uma adaptação de “Aniquilação” (ed. Intrínseca), primeiro livro da trilogia “Comando Sul”, de Jeff VanderMeer.

A trama gira em torno de uma bióloga e ex-soldado cuja equipe está investigando a chamada “Área X”, na qual estranhos eventos biológicos desafiam a compreensão. No livro, tudo é narrado do ponto de vista dessa mulher, que não tem muita certeza do que está fazendo ali e observa os acontecimentos como se os visse através de um sonho. O leitor passa a primeira metade do livro sem saber se pode confiar na narradora, que escreve a história em seu diário de campo. E, na segunda metade, ele junta-se a ela num caminhar trôpego pelo enredo.

O grande trunfo do livro é conseguir aproximar o leitor de um mundo necessariamente irreal. Um mundo de impossibilidades intangíveis e imagináveis. Já no filme, que conta com uma boa atuação de Natalie Portman, os acontecimentos abandonam esse aspecto onírico para ganhar firmeza. Ao contrário do livro, todos os personagens têm nome. As circunstâncias que cercam a Área X não são tão misteriosas assim. E espectador não tem dúvidas sobre a presença mental da protagonista, que, além de bióloga, é ex-soldado e sabe lidar com situações de estresse extremo.

É nesse excesso de informação que a adaptação mostra-se inferior ao original. O que caracteriza o livro de VanderMeer é o fato de o leitor nunca ter certeza do que é real e do que está na cabeça da protagonista. A mente da bióloga não registra observações racionais, mas um profundo sentimento de angústia diante de fatos que lhe escapam à compreensão.

Já o filme, que não tem como escapar da imagem, tinha a difícil missão de representar o irrepresentável, de mostrar aquilo que não pode ser visto, mas é sentido. O esforço é louvável, mas o resultado é apenas bom. É um vislumbre do livro.

Não deixe, no entanto, que a avaliação o faça desistir de ver a produção. Se abandonarmos a comparação e analisarmos o filme por seus próprios méritos, o que provavelmente é mais produtivo, o resultado é uma ficção especulativa de primeira. Não chega a fazer o espectador mergulhar em seu próprio inconsciente, mas dá um gosto do que seria encontrar um outro tipo de mente.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!