FLÁVIO SALIBA

Profissão, identidade e cidadania

Inserção precária no mercado de trabalho motiva angústia


Publicado em 29 de novembro de 2019 | 03:00
 
 
 
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Não sei se o povo tem o governo que merece. Mesmo porque “povo” é uma categoria muito ampla e diversificada. Constituído em sua maioria por pessoas de bem, digamos, de cidadãos cientes de seus direitos e deveres, o povo brasileiro inclui, no entanto, uma malta de predadores que tornam a vida em sociedade quase insuportável. Não bastassem os políticos e instituições públicas corruptos e irresponsáveis, a sociedade se vê acossada pela criminalidade violenta, pelo medo de andar nas ruas e por todo tipo de imprevisto na vida cotidiana.

Ninguém confia em ninguém, e isso é o oposto da condição de cidadania, que, além de liberdade e igualdade de direitos e deveres, pressupõe elevada dose de confiança no semelhante. Pergunto-me até que ponto a cidadania incompleta de uma sociedade marcada pelas desigualdades sociais, pelos baixos níveis educacionais, pelo desemprego e pela instabilidade do mercado de trabalho seria responsável pela proliferação de todo tipo de psicopatas, estelionatários e boçais. 

Estudos indicam que cerca de 4% dos brasileiros apresentam, em maior ou menor grau, traços de psicopatia, o que equivale a cerca de 8 milhões de indivíduos. Inteligentes e ambiciosos, circulam com desenvoltura no meio político. Essas sociopatias não conhecem classes sociais, atingem democraticamente todas as camadas da população: os ricos, que vivem, muitas vezes, de privilégios que usam com maestria; as classes médias, que se veem ameaçadas de empobrecimento; e os pobres, que são humilhados e costumam não ter trabalho certo.

Dado que a profissão é a principal fonte da identidade adulta, não é difícil concluir que a inserção precária no mercado de trabalho seja motivo da angústia que leva muita gente a delinquir. Pergunte a um emergente de classe média qual é sua profissão e ouvirá que ele “mexe” com construção, “mexe” com venda de “importados” ou de carros usados. “Mexe”, ou “faz rolo”, até com advocacia.

Esse “mexer” é o sinal mais claro de inconsistência profissional e, portanto, de identidades individuais e coletivas pouco sólidas. Essa situação de anomia generalizada favorece a busca de alternativas – no caso, meramente simbólicas – de integração social por meio de cultos religiosos, de torcidas organizadas de futebol, de gangues criminosas ou mesmo de inofensivas e indecifráveis tatuagens pelo corpo todo.

Se, por um lado, os ladrões e estelionatários, favorecidos pelos meios eletrônicos, disseminam a desconfiança entre todos, por outro, os boçais (estúpidos, rudes, grosseiros e ignorantes, segundo o dicionário Aurélio) se incumbem de ampliar a selvageria no trânsito, de espancar e, com frequência, matar mulheres e outras pessoas inocentes. Caso contrário, como explicar os absurdos níveis de violência registrados no país?

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