O que Milei, Lula, o falecido ditador de Uganda, Idin Amin Dada, e o Caudilho da Espanha, Francisco Franco, têm em comum? Pois é, um governante da direta, outro da esquerda, um dos mais sanguinários ditadores da história e o ex-mandachuva espanhol têm um encontro marcado na porta do céu. Os quatro, em seu tempo de governança, consideram-se (consideravam-se) enviados de Deus para “salvar” seus países.
Sinal dos tempos. O nome de Deus nunca foi tão usado pela esfera política, principalmente em tempos de crise. Deus é sempre a referência de homens que carregam em sua alma a pretensão da onipotência. Alguns exemplos.
Face esotérica do ultraliberalismo
Começo com Javier Milei, argentino que habita a Quinta de Olivos (residência dos presidentes), representando o ultraliberalismo e que, nos últimos tempos, tem mostrado sua face esotérica, como descreve o jornalista Juan Luis González, em seu livro “As Forças do Céu, Segredos, Confissões e Perigos da Primeira Presidência Messiânica”.
Místico, solitário, cercado por quatro pets clonados do cão Conan, seu falecido xodó, e ancorado na irmã Karina, real comandante do projeto político, Milei é um mistério: abomina as religiões tradicionais, e ninguém sabe de suas atividades diárias, vai à Casa Rosada uma vez por semana, recebe poucas pessoas, cercando-se de um núcleo de fiéis amigos que compartilham de seu esoterismo. Prometendo apenas governar e refundar o país, dolarizar a economia, cortar gastos público e enterrar a “casta política”, Milei usa uma retórica de tons quase religiosos: o inimigo é o Estado, e a liberdade individual é o paraíso a ser conquistado.
Tanto Milei quanto Lula se apresentam como homens providenciais, guiados por uma missão histórica ou divina, podem redimir os maldes coletivos e refundar a Nação.
Metamorfoses do predestinado
O segundo é o palanqueiro que tentará buscar seu quarto mandato como presidente. Luiz Inácio se acha um predestinado. Contam-se 10 exemplos de declarações em que Lula se compara a Deus. A última foi sobre o sofrido Nordeste: “ Deus deixou o sertão sem água” porque sabia que ele seria presidente do Brasil para resolver o problema histórico.
Quando não se compara a Deus, Lula avisa aos seus fiéis que não é tão fiel a eles: “não tenho vergonha, muito menos tenho razão para não dizer que mudo de posição... prefiro ser considerado uma metamorfose ambulante”. Para sua base, Lula continua sendo o guia capaz de salvar o Brasil das forças do atraso, do autoritarismo e do neoliberalismo (onde se agasalha Javier Milei). Explicando: se Lula encarna um messianismo de raízes populares e de esquerda, Javier Milei surge na Argentina como o profeta do antipetismo local e do ultraliberalismo.
A identidade ideológica do ciclo lulista vem mudando de posição desde o primeiro mandato, quando ainda se podia dizer que iniciava ali o percurso da esquerda. Hoje, os próprios petistas consideram que o Lula 3 caminha pela trilha de centro-direita, como garante José Dirceu, um dos fundadores do PP, ex-deputado e ex-chefe da Casa Civil do primeiro governo petista.
Assim falou Dirceu: “Lula montou um governo que não é de centro-esquerda, é um governo de centro-direita. Eu falo isso e todo mundo fica indignado dentro do PT. Mas essa é a exigência do momento histórico e político que nós vivemos”.
Enviado assassino
O terceiro “enviado de Deus” é o ex-ditador de Uganda, Idi Amin. Conta-se dele uma historinha. Dizia ao povo que falava com Deus nos sonhos. Certo dia, um jornalista lhe fez uma pergunta: "O senhor tem com frequência esses sonhos? Conversa muito com Deus”? Lacônico, respondeu: "Só quando necessário". O “enviado de Deus” assassinou cerca de 500 mil pessoas.
Caudilho 'graças da Deus'
O quarto é o ditador Francisco Franco, que usava a Providência Divina para se afirmar: "Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa Pátria para que a governemos". Não satisfeito, mandou cunhar nas moedas: "Caudilho da Espanha pela graça de Deus".
O ditador, que liderou o país de 1930 até sua morte, em 1975, foi marcado por violações dos direitos humanos. Implantou uma ditadura conservadora e autoritária, de características fascistas. Contou com o apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista. O franquismo foi caracterizado por conservadorismo, militarismo e um forte sentimento nacionalista, sendo marcado pela perseguição e assassinato de oponentes.
Dramaturgia política
Interessante observar que os “salvadores da Pátria” capricham no uso da linguagem popular e no desempenho como atores, conforme descreve o sociólogo francês Roger-Gerard Schwartzenberg, em seu "O Estado-Espetáculo", lançado em 1977.
Na política contemporânea, os governantes deixam de ser apenas administradores da máquina pública. Tornam-se atores em cena aberta, diante de uma plateia que aplaude, vaia e cobra. Schwartzenberg mostra que a política se transformou em dramaturgia, com palco, iluminação, plateia e personagens, sendo o mais poderoso deles o "salvador da pátria".
Essa figura surge em tempos de crise, quando a sociedade se vê diante de ameaças econômicas, corrupção generalizada ou instabilidade institucional.
O “salvador da pátria” precisa encarnar uma narrativa épica: o herói que luta contra os vilões da vez — elite corrupta, partidos decadentes, o imperialismo e a imprensa "inimiga". Como num roteiro teatral, seus gestos são calculados, seus silêncios carregados de sentido, seus discursos pensados para emocionar mais do que convencer racionalmente. A política se converte em performance.
Passado presente
O Brasil conheceu o "pai dos pobres" Getúlio Vargas, que transformou o rádio em meio de ligação direta com as massas e terminou sua trajetória com uma carta-testamento que ainda hoje ecoa como ato derradeiro de encenação política. Na Argentina, Perón e Evita fizeram da Casa Rosada um palco de ópera popular, mobilizando descamisados como parte ativa da cena.
Na França, Charles de Gaulle encarnou a grandeza nacional: sua voz grave e seus discursos televisionados reforçavam a imagem de estadista destinado a salvar a pátria em momentos críticos.
No presente, como escrevemos acima, Lula se confunde com uma narrativa de redenção coletiva; já Milei, na Argentina, transforma leões e serras em marca estética de sua cruzada contra o "sistema".
Em suma, o "salvador da pátria" é a personagem do Estado-Espetáculo. Emociona, cativa, ilude. Porém, como todo espetáculo, sua força depende da manutenção constante da cena. Quando as luzes se apagam, o mito desmorona.