Gaudêncio Torquatro

As curvas da esquerda

Pragmatismo e transformações do movimento no Brasil


Publicado em 27 de março de 2022 | 03:00
 
 
 
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Ante a hipótese, bem razoável, da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no pleito presidencial de outubro, emerge naturalmente a questão: onde está e para onde vai a esquerda no Brasil? Para começar, a constatação: a esquerda, hoje, já não é mais a de Lula em fevereiro de 1980, quando um grupo heterogêneo, formado por militantes de oposição à Ditadura Militar, sindicalistas, intelectuais, artistas e católicos ligados à Teologia da Libertação, reuniram-se no Colégio Sion, em São Paulo, para fundar aquele que viria a ser o mais forte partido de massas do país, o PT.

Não é mais aquela esquerda que desfraldava a bandeira do socialismo marxista, inspirada na visão de Karl Marx sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua catastrófica derrocada. E está longe de ser a ditadura do proletariado que tanto agitou a ex-URSS de Lenin, o revolucionário Vladimir que levou os bolcheviques ao poder na Rússia de 1917, e do outro Vladimir, o Putin, hoje o senhor da guerra que destroça a Ucrânia, e admirado pelo amigo Jair Bolsonaro.

A esquerda, é forçoso reconhecer, frequenta mais a boca e menos a consciência de nossos políticos. É mais um verbete que funciona como graxa para limpar perfis corroídos. Tem perdido charme ao longo das últimas décadas.

A “violência como parteira da história”, dogma apregoado por Engels e que se firmou na segunda metade do século XIX, até tentou fazer escola por nossas plagas, nos idos de 60, mas foi repelida pelos militares. O país abriu uma vasta área no canto esquerdo do arco ideológico, onde passou a acomodar as estacas do alquebrado socialismo revolucionário ao lado de tijolos do liberalismo político e econômico. Donde se produziu uma salada mista, tendo como condimentos o Estado mínimo e o Estado máximo, sob expressões até hoje polêmicas, como “capitalismo de face humana”, “socialismo de feição liberal”, todas patrocinadas pela corrente maior da social-democracia.

Nem mesmo a China, também controlada por um partido comunista, como a Rússia, se porta como uma Nação de identidade socialista, eis que implantou um ambiente liberal para o setor privado, apresentando-se, hoje, como uma superpotência econômica, liderada pelo pragmático Xi Jinping, no centro do poder desde 2012.

Desse modo, falar da esquerda é um velho vício que tem mais a ver com as molduras da estatização e da privatização de empresas, de gastos na esfera da proteção social, na defesa dos direitos humanos, em todas as suas dimensões, ou no maior ou menor intervencionismo do Estado.

Pragmatismo, é nessa arquitetura que se esboça o que muitos pensam da esquerda. Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo, um perfil assentado no banco do liberalismo ou, em outros termos, um frequentador assíduo das aulas do centro e da direita, virou esquerdista de repente? Pois é, seu Partido Socialista Brasileiro acaba de empossá-lo como guru do partido, a ponto de indicá-lo como vice na chapa a ser encabeçada por Lula. E o que os petistas pensam? Muitos trituram as unhas ao vê-lo como aliado do lulopetismo. Lembre-se que ele sempre o criticou. O pragmático esqueceu o dogmático.

O fato é que Luiz Inácio já experimentou todos os sabores da esquerda e fará tudo que estiver ao seu alcance para voltar a prová-los mais uma vez. Desta feita, com um olho no centro do poder, outro no andar da carruagem congressual. Lula aprendeu que governar no Brasil é um ato compartilhado. Sem uma base parlamentar, vai ser encostado pela velha política. E os mais renitentes petistas terão de recitar sua receita.

A esquerda não faz mais medo. Hoje, seu caminho é cheio de curvas. Só amedronta aqueles que dela se servem para compor discursos, narrativas estrambóticas, alas que veem escapar de suas mãos os frutos do poder. De tanto bater, as “esquerdas” alcançaram a alforria. Querem voltar a adentrar o Palácio do Planalto. Claro, preservando os vãos centrais do liberalismo. E sem as reminiscências das lorotas leninistas/marxistas. E mais: com cuidados redobrados sobre as pilastras da Petrobras, com seus dutos mensaleiros.

Quem quiser assumir posições de esquerda, que se acolham em outros lugares, como o PSOL, o PSTU e adjacências (será que existem adjacências?). Sobre o restante, há muito consenso. Serão preservadas as outras faixas das esquerdas democráticas, a liberdade política, o controle social do mercado e a organização da sociedade civil.

Agora, que ninguém espere por milagres. Persistirão as antigas conexões do patrimonialismo. Que correrão para se abrigar no Centrão das conveniências.

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