Gaudêncio Torquato

Mudança

O perfil que melhor encarne o conceito será entronizado na Presidência


Publicado em 08 de agosto de 2021 | 03:00
 
 
 
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A palavra mudança é uma das mais recorrentes do discurso político, parte do vocabulário de velhos e novos candidatos. A promessa de mudança abre as portas da esperança, o desejo de pessoas em sonhar com um futuro mais próspero e mais feliz, de melhorar sua condição de vida.

E mesmo sob o descrédito que o termo adquiriu na onda da corrupção que empurra a esfera política para o pântano, os eleitores ainda acreditam nessa isca da mudança. Agora, jogada com antecedência nesse vulcão eleitoral em que se transformou o Brasil. Na extrema direita, o vulcão ativo Bolsonaro. Na outra margem, o vulcão Lula, menos incandescente. No meio, vulcões menores expelem fumaça.

Hipótese comprovada: o perfil que melhor encarne o conceito de mudança será entronizado na Presidência. Vejamos alguns significados. Mudar seria alterar a ordem estabelecida, como impulsionar a economia e aumentar o dinheiro no bolso das pessoas; melhorar o sistema de saúde; baratear os alimentos; facilitar a mobilidade urbana; dar aos cidadãos melhor segurança. Mas não abriga só aspectos materiais do cotidiano.

Mudar significa também mexer em padrões e costumes, dando a eles maior funcionalidade, como a burocracia. Mudar é aplicar a lei, com justiça para todos. É não roubar e não deixar roubarem. É dar crédito aos valores que sedimentam a civilidade e o civismo, respeito aos direitos individuais e coletivos.

Tarefa difícil num país em que as instituições não estão de todo consolidadas e as tensões constantes ameaçam a harmonia social. Maquiavel já pregava: “Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas.” Se já é complicado em qualquer democracia, imagine-se aqui, nessa cultura inoculada pelo patrimonialismo. Ademais, parcela ponderável de nossa população padece de torpor. A imagem que costumo usar é a do Mané que caiu em um poço profundo.

Desesperado, tenta escalar as paredes. Sobe alguns metros e cai novamente. Obcecado pela ideia de se salvar, não percebe a corda lançada por um desconhecido que passava por ali: “pegue a corda, pegue a corda”. Surdo, voltado para a tarefa, só reage quando sente a dor de uma pedra jogada nas costas. Furioso, olha para o alto, vê o desconhecido e grita: “o que você deseja? Não vê que estou ocupado? Não tenho tempo para preocupar-me com sua corda”. E recomeça o trabalho.

Nossa esperança é a de que, após tanta pedrada nos costados, Mané acorde, passe a engrossar as multidões nas ruas e participe do sentimento coletivo de nacionalidade.

Urge resgatar o conceito de Pátria. Brasileiros de todas as classes hão de se engajar na realização de seus anseios, na convicção de que, marchando juntos por um ideal, nenhum ficará para trás, nem mesmo os incréus.

Jorge Luís Borges narra a história de um homem que, ao longo dos anos, povoou seu mundo com imagens de reinos, montanhas, baías, ilhas, peixes, moradas, astros, bichos e pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto. Puxando a alegoria para a nossa fábula: Mané começa a descobrir que o país acalentado em seus sonhos é a imagem de sua própria cara.

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