JÚLIO ASSIS

As aparências asas

Redação O Tempo


Publicado em 16 de dezembro de 2013 | 03:00
 
 
 
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Na balbúrdia do shopping vejo Anastácio sentado sozinho na praça de alimentação, macambúzio.
Olha para o nada, indiferente a toda aquela agitação. Sobre a mesa e na cadeira ao lado, embrulhos de presentes de Natal. Só quando chego bem na frente dele é que parece despertar com a presença do meu rosto conhecido. Esboça um frágil sorriso ao me cumprimentar e me convida pra sentar.

– Quem morreu? – pergunto.

– Por quê?

– Tá com uma cara de velório!

Bastou esse comentário para Anastácio disparar.

– Nada. A Verinha ta aí fazendo compras e eu tô esperando aqui. De vez em quando deixa uns embrulhos e sai de novo. Eu devia ter ficado em casa, mas tenho que dirigir o carro. Não aguento essa multidão, uma loucura tanta gente pra lá e pra cá, correndo pra comprar. Parece que estão disputando quem compra mais, hipnotizados pelo consumo. Eu não gosto dessa época do ano.

Pra incentivarem esse consumo, pregam uma fraternidade universal, mas no fundo não muda nada. Falam que o fim do ano é hora de desarmar o espírito, esquecer as brigas, os arranca-rabos, as desavenças, e vendem mensagens ilusórias. Imagina que vindo pra cá ouvi no rádio do carro uma propaganda de uma funerária desejando feliz Ano-Novo. Dá pra acreditar? O desconfiômetro vai a 220 volts. Os caras tão doidos pra ter ver morto! São essas engambelações dos gênios do marketing. Os mesmos que fazem as funerárias implantarem programas de ginástica para grupos de idosos.

– Um absurdo! – Concordo. E ele continua.

– Outro dia, numa festa de amigo oculto, me contaram em segredo que certa pessoa recusou duas
vezes o papel com quem ela havia saído porque não gostava dessas pessoas e deu a desculpa de que havia tirado o próprio nome. Duas vezes? E na festa tava lá, tapinha nas costas de todo mundo, rindo como se nada tivesse acontecido. O outro te pergunta com uma falsa educação o que você quer beber, você responde, ‘pode ser uma cerveja’, ele vai na geladeira, escolhe a quente e te entrega com um sorriso de desculpa, dizendo, ‘não tá muito gelada’.

– É desse jeito! – reforço.

– Na televisão as propagandas das lojas são maravilhosas. Aí você chega aqui, quando consegue que um vendedor te dê atenção, os produtos já acabaram. Se precisar trocar depois, então, esquece.

– E sobem os preços e dizem que é promoção (minha vez de reclamar).

– Meu estômago já tá embrulhando de pensar na ceia. Fazem a comida de manhã pra colocar na
mesa meia-noite, tudo seco misturado com frutas e aquelas bebidas doces. O que a gente não aguenta comer fica pro almoço do dia seguinte. Gosto é da comida do dia a dia.

– Entra no sal de fruta. – recomendo.

– Quero ver na hora de sair daqui. Pra entrar foi um custo. Achar vaga então! Eu não entendo como esses administradores de estacionamentos não conseguem saber que as vagas estão todas ocupadas. Vão deixando todo mundo entrar e a gente que se vire, que fique rodando. É pagar pra sofrer. E não tá barato! O que esses estacionamentos tão ganhando! Você vem pra gastar nas lojas e ainda tem que pagar pra parar o carro.

– Querem ganhar de todos os lados.

– Olha ali aquele Papai Noel. Tá sentado tirando fotos com as crianças sem conseguir disfarçar a cara de quem já não suporta mais a função pra ganhar um troco. Parece que a qualquer instante vai puxar até o chão o cabelo daquela menina, até ela chorar. Se tivesse um trenó de verdade, ele já tinha dado no pé há muito tempo.

Uma pessoa vem em nossa direção tão atulhada de presentes que não dá pra ver o rosto. Só quando ela fala, “bem, ajuda aqui”, reconheço a voz. É a Verinha, confirmo depois que ela consegue, com ajuda do marido, ajeitar os embrulhos sobre a mesa.

– Achou meu presente? Anastácio pergunta.

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