JÚLIO ASSIS

Cartas eternas

Redação O Tempo


Publicado em 31 de março de 2014 | 03:00
 
 
 
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Sei que milhões de nós, brasileiros, estamos nesta segunda-feira olhando para trás, pelos exatos 50 anos do golpe militar de 1964, que trouxe páginas negras à nossa história. Sei também que para outros milhões de pessoas isso não faz aparentemente a menor diferença, porque esses não têm a devida consciência do atraso que esse período reflete em nossa trajetória. E sei que uma parte dos que não entendem o peso desse passado vão ainda, em um ou outro momento, compreendê-lo em sua amplitude.

As portas de entrada para se assimilar de fato a dimensão de um processo histórico como esse podem ser as mais variadas. Por exemplo: ter na família alguém que foi vítima da ditadura em prisões e torturas; ouvir depoimentos de pais, familiares e amigos; apreender na sala de aula; assistir filmes ou conhecer outras expressões artísticas que tratam do assunto e a partir daí buscar mais informações; ler livros de diferentes gêneros que também tratem do tema etc.

No meu caso, essa assimilação introjetou na veia cerca de 20 anos depois do golpe. Eu entrava na vida adulta quando ganhei de presente de um amigo o livro “Cartas da Prisão”, de frei Betto. Até então o que ouvia nas salas de aula de história e em meu círculo de vida eram manifestações para mim genéricas contra os militares, sobre o início da luta pela democratização no país, mas eu estava naquela fase comum em grande parte dos que transitam entre a adolescência e a juventude, de desinteresse pela política.

Felizmente, um dos meus interesses era ler livros, conhecer literatura, daí fui mais pela curiosidade às páginas de “Cartas da Prisão”. O impacto causado pelas correspondências de frei Betto não teve similar na minha formação em relação às obras outras que conheci sobre o golpe militar. E a partir delas, consolidei em outras buscas meu conhecimento sobre esse regime de opressão, onde se encaixa também, por exemplo, o humor corrosivo dos personagens do cartunista Henfil.

As cartas foram escritas pelo religioso entre 1969 e 1973, quando estava preso pela ditadura, no Presídio Tiradentes, no Carandiru ou na Penitenciária de Presidente Venceslau. Eram dirigidas a familiares e amigos. Ele, na época um jovem frei dominicano, narra em uma prosa poética, dramática e comovente as difíceis privações do cárcere, as lutas de resistência dos presos políticos e ao mesmo tempo expressa a sua fé permanente.

Consta que as cartas saíram clandestinamente dos presídios, foram recolhidas e levadas para a Itália, onde ocorreu a primeira publicação que teria sido lida pelo papa Paulo VI. Só depois o editor brasileiro Ênio Silveira montou um esquema para conseguir publicar no Brasil, em 1974, e os 3.000 primeiros exemplares acabaram em nove dias. Depois foi traduzido na França, Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Reino Unido, Holanda e Suécia. E atualmente continua disponível no Brasil por reedições relativamente recentes. Como definiu na época Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, as cartas “representam um dos mais altos documentos de autenticidade humana e de beleza literária que jamais se escreveram no Brasil”.

Frei Betto costuma dizer que foi a partir daí que ele decidiu seguir também a carreira de escritor, hoje com dezenas de títulos publicados em diversos gêneros. Especificamente sobre a ditadura, é dele também o pungente “Batismo de Sangue – Os Dominicanos e a Morte de Carlos Marighella”, de 1982, que foi levado para o cinema com a direção de Helvécio Ratton.

Olhar para trás é também uma forma de olhar para o futuro. Temos uma democracia com as manchas daquele período cinzento e depois dele recheada de graves problemas políticos e sociais em nosso caminho, em razão dos quais ainda há muito a evoluir como nação.

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