JÚLIO ASSIS

Homem sem nome

Redação O Tempo


Publicado em 09 de fevereiro de 2015 | 04:00
 
 
 
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Sentado sozinho do lado da porta do bar, uma garrafa de cerveja na mesa colocada na calçada, acende um cigarro com o ar de falsa autoridade que o gesto exibe.

É um homem maduro, quase velho, com a aparência de uma vida já carregada nas costas. Observa os carros passando na volta para casa após o dia de trabalho. Não tem o semblante cansado. Traga o cigarro e, ao que parece, pensa.

O bar fica numa região periférica da capital, onde um quebra-molas exige que os motoristas reduzam a velocidade. Eles passam e enquanto vencem o obstáculo, rapidamente olham aquele homem sozinho. O homem olha os motoristas na velocidade em que seus carros passam. O olhar transeunte é, assim, uma tentativa inútil de saciar a curiosidade, de descobrir o outro em suas feições.

O homem sem nome se cansa de observar os carros, e seu olhar penetra a lembrança da estranha notícia que leu de manhã. Em Catingueira, interior da Paraíba, um cidadão de 33 anos invadiu a igreja, agrediu o padre no rosto e teria destruído peças sacras. Depois, do lado de fora da igreja, passou mal.

Um primo leva o cidadão até o hospital, aonde ele chega morto. Os médicos não fazem o atestado de óbito sob a alegação de que ele não havia passado por cuidados médicos no local.

O primo providencia e inicia o velório, mas o delegado da cidade interrompe a cerimônia pela ausência do documento que aponta a causa da morte. A família, mesmo entristecida, concorda, e o corpo é levado para o Instituto Médico Legal.

O delegado apura que o cidadão já tinha tentado agredir outros padres. “A família disse que o rapaz tinha problemas intelectuais e já tinha protagonizado outras situações de agressões contra padres. Eles não sabem informar os motivos que o levavam a fazer isso”, era o que trazia o jornal.

Mais do que o inusitado do velório interrompido, o homem sem nome, que gosta de ler livros e ir ao cinema sozinho, logo se lembra de “2666”, obra literária de Roberto Bolaño, que em uma de suas partes traz a narrativa de um personagem que entrava nas igrejas mexicanas, destruía peças sacras, matava padres e seus auxiliares, e deixava, no piso dos templos, uma urina em quantidade muito acima do normal. No livro, o personagem, denominado Penitente, foi diagnosticado com sacrofobia, que significa medo ou aversão ao sagrado, aos objetos sagrados, particularmente os da sua própria religião.

A vida imita a arte ou vice-versa, lembrou o jargão o homem sem o nome, e esticou o pensamento a algo mais do próprio livro de Bolaño. O autor transformou em ficção a morte sequencial de mulheres que ocorreu, de fato, em cidades do interior do México, tema também do filme “Cidade do Silêncio”, de Greogry Nava, com Jennifer Lopez e Antonio Banderas.

Na fronteira do México com os Estados Unidos, mas na parte do México, onde existem muitas fábricas (maquiladoras), mulheres trabalhadoras desaparecem a caminho ou na saída do serviço e são mortas.

Um motorista vem com seu veículo em velocidade acima da média, não vê o quebra-molas e, ao se chocar com o obstáculo, repentinamente perde o controle da direção do carro que vira para o lado da mesa na calçada. Instintivamente o homem sem nome balança as pernas no movimento de se levantar e derruba a cadeira. Com esforço o motorista recupera a direção do veículo, acelera e some.

O homem sem nome pega a cadeira no chão e se senta novamente. Assustado com o barulho, o dono do bar sai até a porta para ver se tinha acontecido alguma coisa. O homem sem nome narra o acontecido, xinga o motorista e pede outra cerveja. Acende mais um cigarro. Tenta se lembrar de um filme de um quase acidentado.

Texto originalmente publicado em 24.5.2011. O colunista está de férias

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