Faça esse mundo acordar, dizia Lupicínio.
Ao longo da estrada, dos declives e contornos das matas, sai uma aparente névoa branca. Aos desavisados e refrescados pelo ar-condicionado dos carros a paisagem parece indicar uma bruma pós-neblina de manhã de inverno. Mas não naquele fim de tarde. Mais adiante, depois do morro seguinte, a fumaça traz nítida a cor ferrugem do fogo que passou, e, ainda mais à frente, chamas persistem a crepitar. Ao fundo, o sol é só uma bola entre o vermelho e o laranja, perto de desaparecer. A névoa branca, deixada quilômetros atrás, é apenas um resquício do fogo que veio antes faminto e transformou em cinzas o que estava ali. A fumaça sobe depois enredada. Sem ter para onde sair entre as valas, se concentra em formas que lembram as brumas, um falso fascínio. Não há corporação suficiente, não há estrutura para combater tantos incêndios comuns nesta época, que podem vir de microfagulhas.
Viro a curva, e a velocidade do carro não me impede de observar o andarilho que caminha lento no acostamento. Para ele, a vida trafega em outro ritmo. Ouve o barulho dos motores, já se habitou a sentir seu corpo às vezes titubear pelo movimento dos carros que passam velozes, segue o rumo traçado pela tinta branca da pista e pelas mudanças de paisagem. Carrega em um saco puído seus poucos pertences, um resto de cobertor, come o que aparece, viaja a pé, sem destino.
Os andarilhos que mais me trazem estranheza são alguns que conheço e que não ficam nas rodovias. Estão nas cidades, na vida urbana. Não falo de mendigos ou moradores de rua. Esses de que trato têm moradia, família, apenas não se consideram inseridos na vida social ou não são afeitos a ela. Por isso se comportam de forma arredia. Quando não estão trancados em casa, saem pelas ruas da cidade a caminhar e a observar a humanidade, sem desejo de nenhum contato. Quando é necessário, cumprem os seus afazeres, pagam suas contas, compram o necessário e se bastam, vivem o seu mundo.
No caixa eletrônico, uma fila se forma para receber a ajuda da atendente do banco. As pessoas que aguardam ali, em grande parte, não querem aprender a digitar os códigos, não querem saber como acessar a senha, só desejam ter em mãos o dinheiro que vem daquela máquina, os papéis quitados de suas contas. Muitos desses são daqueles que não enxergam a vida além do cotidiano prático. Acordam e se dedicam às rotinas de sobrevivência, têm boa convivência com os familiares, vizinhos, praticam sua religião, têm suas formas de lazer, mas nada das complicações que vêm dos noticiários, da Bolsa de Valores, da última moda, das bombas lá no estrangeiro, do governo. Governo?
Nesta última tribo é outro universo que não identifico na simples acepção da chamada “alienação” ou de estar à margem da sociedade. São opções de vida de quem tem como prioridade a cada manhã seus ritos e suas necessidades. É claro que podem estar mais susceptíveis às ações de espertos que se beneficiam da ignorância alheia. Mas pagam o preço da ingenuidade pelo prazer de estar bem consigo mesmos e com os seus ao redor. Querem olhar para o céu e prever se virá a chuva para garantir a plantação. Comem e repetem, no almoço de fogão a lenha, o arroz com o pequi colhido no quintal, onde há também jabuticaba e couve, onde criam porcos e galinhas, onde secam roupa no varal e estendem a rede pra descansar. De noitinha, a prosa com os amigos em volta da fogueira e uma bebida esquenta-peito antes de entrar debaixo do cobertor. Governo?
Alvorecer ao escutar no rádio velho uma música do Lupicínio.
Repare bem os ipês.