Nenhuma amiga entendia como ela, educada à moda antiga, tão delicada e equilibrada, foi se apaixonar por aquele homem dominador e possessivo, embora coerente com suas convicções. Nada mais “dor de cabeça que aquilo”, era obrigada a concordar.
Mas, não tinha jeito, Fernandinha se encantou desde a primeira vez em que o viu, na fila do banco. Digo, na fila quilométrica e empacada do banco em que ele, Betão, começou a gritar:
– ABSUUUUURDO!!! Cadê o respeito com os clientes? Tem uma hora que estou nessa p... de fila que não anda. #%@&*&%#!!!
A concordância foi geral. Depois do esparrama em altos decibéis, a confusão começou. Até o gerente foi obrigado a descer do segundo andar para acalmar os ânimos, e o Betão lá, coordenando a manifestação.
– É isso aí – dizia a Fernandinha –, tem mais é que protestar mesmo. O cara tá certíssimo.
E foi a partir desse dia que tudo o que o Betão dizia “estava certíssimo”.
Após o quiproquó no banco, acabaram se encontrando por acaso no café da esquina. Nem acreditou quando o viu entrando, imponente e decidido. “Um poço de testosterona”, como tentou explicar depois às amigas.
– Um café sem açúcar! – pediu à mocinha do balcão.
Tomou de uma golada só, pediu outro e, enfim, resolveu sentar-se na banqueta ao lado. Digo, ao lado dela, Fernandinha, que precisou encolher a perna para que não tocasse a dele, pois, além do espaço exíguo, o homem era um colosso.
– Gostei de sua atitude no banco –, disse baixinho ao vizinho de banqueta, que, só depois de alguns segundos, deu-se conta da presença tímida e pequena a seu lado.
– Está falando comigo?
– É, quer dizer, eu disse que gostei de sua atitude no banco...
– Você estava lá? Um ABSUUUUUURDO!!! Tudo neste país é um ABSURDO!!! E sabe por quê? Porque ninguém diz nada, ninguém reclama seus direitos.
– É um absurdo mesmo! – concorda a outra, já olhando encantada para a figura ao lado. E resolve puxar assunto. Nisso, o cafezinho quase vira uma cafeteira inteira, e a manhã, repleta de compromissos inadiáveis, fica para segundo plano – ela e os compromissos, naturalmente.
O chefe liga para seu celular. Fingindo ir ao banheiro, ela sai para atender.
– Fernanda? Onde você está? Preciso dos documentos com urgência – diz uma voz aflita do outro lado.
E ela:
– Na fila do banco, você acredita? Um ABSUUUUURDO isso aqui, uma falta de respeito...
Volta pra banqueta onde o Betão, como um rolo compressor, conta suas experiências de palanque desde o tempo de garoto, quando, ainda de calças curtas, reclamava da empadinha sem azeitona da cantina.
Depois, na universidade, quando presidente de uma entidade estudantil, quase enlouqueceu o reitor, que já não via a hora de se livrar do aluno encrenqueiro e contestador.
Fundou uma ONG para desespero dos madeireiros, guseiros e plantadores de soja transgênica. Nem os pescadores de baleias do Japão se viram livres de suas cartas e e-mails de protesto.
E ela lá, concordando com tudo. Encantada.
Na hora de pagar a conta, reclama do troco.
– Ô mocinha, eu não quero bala, eu quero moeda, está entendendo?
Combinam de se encontrar após o expediente e também no dia seguinte, no outro e no outro, até, de repente, se verem juntos sob o mesmo teto.
Ele mandando, e ela concordando, mesmo quando achava que ele não tinha razão.
– Tem que ter coragem para enfrentar a fera! – desabafou um dia com a amiga.
Até que, cansada de concordar, resolve questioná-lo. Ele podia ter razão em muitas coisas, mas não em todas, e já era hora de aprender a aceitar opiniões contrárias. No começo, foi um caos.
A vizinhança ficou em estado de alerta – um dia essa casa cai. E não caiu, muito pelo contrário.
– Essa mulher é um ABSUUUURDO! – questionavam os amigos de velhos Carnavais, injuriados com a ausência do Betão na sinuca.
Enquanto ele, preocupado com o filho que estava para nascer, questionava com Fernandinha – de maneira ponderada e tranquila – o nome do bebê.