Estou distante, em local e em pensamentos. Volto ao dia do meu nascimento, quando meu pai, emocionado, grita pelos corredores: “Menina! É uma menina!” Depois de três homens, era o que ele mais queria.
O tempo passa e os sentimentos ficam. Há muito deixei de ser a garotinha de botinas pretas, vestidos curtos, cabelos com tranças, que se escondia atrás das portas ao escutar o barulho do carro na garagem.
E, ao vê-lo entrar, me atirava em seus braços. Antes, passando-lhe um “susto”.
Presenteava-me com bichinhos coloridos, panelinhas de plástico, chocolates... Um universo de coisas simples, pequenas, valiosíssimas aos olhos de uma menina. E nada mais precioso que histórias contadas sob a lua, no gramado de nossa casa.
Como a do garoto Giovanni, que eu e meu irmão não cansávamos de ouvir. Depois, recolhíamos os lençóis e íamos dormir tranquilos, protegidos. Naquela paz que somente os anjos e os nossos pais nos trazem.
Mas os meus “sustos” continuariam na juventude agitada, quando eu, repleta de amigos, voltava tarde para casa. E o primeiro namorado, quando meu pai, enciumado, convocou o meu irmão: “Senta lá com eles!” Como meu irmão não foi, ele foi sentar-se no meio de nós.
Conversando nada com nada, assustou o garoto, e eu, indignada, fui reclamar com minha mãe...
“Pelo amooor de Deus! Dá um jeito no papai!” Depois, acabou se acostumando. Afinal, sua filha já era mais moça que menina.
Meu aniversário. E o melhor presente. Uma cachorrinha branca de nome Marilu. Ela conhecia os meus horários, meus itinerários, assim como os do meu pai. E na garagem, feito eu, esperava-o chegar do trabalho. Um dia Marilu se foi, levada pelo peso da idade. E pouco tempo depois fui eu, com 24 anos, quando me casei.
A casa ficou vazia, e sei que naquele dia ele também chorou. E me voltam à lembrança nossas conversas tranquilas, ponderadas. Lições de vida pautadas pela integridade. Lições que guardo como joia rara.
Conversas sábias, com explicações dos porquês, sem cobranças ou vozes alteradas. Conversas de pai para filha, acima de tudo pautadas pelo amor. Depois as chegadas das netas, a casa cheia nos fins de semana.
O almoço das sextas-feiras e o armário repleto de doces, biscoitos e bombons – segredo inviolável das netas com seu avô. Tudo que em minha casa eu tentava proibir era permitido ali. O tempo passou, as netas cresceram.
Vieram as provações, afinal, delas ninguém está livre. Quando ainda estava trabalhando, sofreu um AVC. E ele, meu pai, com uma coragem imensa, sobrevive. Suas lições continuam: perseverança, equilíbrio, paciência, resignação. Nenhum tipo de reclamação...
Gosto de contar-lhe casos, falar-lhe dos passeios, ler-lhe as últimas crônicas.
O mundo lá fora vem se complicando. Como se já não bastassem tantos problemas, me aparece esse “ser” microscópico para mudar o planeta. Mudar as relações, mudar o trabalho, a saúde pública e privada (que requer urgências), os comércios, cinemas, bares, viagens canceladas, pânico e corridas descomedidas aos supermercados.
No último dia 18, meu pai completou 91 anos. Não sei até onde ele entende a gravidade do problema. Pela primeira vez, a família com os filhos, netos e bisnetos não foi a sua casa para abraçá-lo.
Minha mãe, mais nova e ainda bem ativa, me preocupa no meio dessa pandemia. Várias medidas foram e estão sendo tomadas para preservá-los. É por isso que hoje deixo aqui registrado o meu mais caloroso (embora distante) abraço àqueles que me deram a vida.
Optei por dar um tempo com as crônicas, por período indeterminado. É difícil escrever levezas em meio a esse turbilhão de notícias pesadas. Espero que em poucos meses possamos compartilhar abraços de verdade. Até a volta!