Anunciaram que ela viria, mas ninguém imaginou que fosse daquele jeito.
Chuvas são uma benção, necessárias para a agricultura, para o abastecimento de água nos reservatórios, para o retorno do verde aos gramados secos e desbotados, castigados por um longo período de seca.
Quando criança, sair descalça com a meninada em dias de aguaceiros e trovoadas era uma festa. Chutar poças d’água (mais lama que água) era diversão que deixava as bonecas e os carrinhos no chinelo. Depois, o recolhimento às nossas casas, após as chamadas das mães, horrorizadas com nossas lambanças dos pés à cabeça, e a velha frase de sempre: “saiam da chuva, cuidado com os raios!”.
Mas menino não atina a nada, afinal os raios estavam no céu, não nas “lagoas” enlameadas que se formavam nos campinhos e nos quintais. Depois, o banho quente e demorado no chuveiro, a bucha vegetal esfregando as costas, a água que escorria vermelha e a toalha enrolada nos cabelos, tudo antes que a gripe chegasse. Tantos anos... e as lembranças permanecem.
Há uma semana, acompanho de perto as vítimas das chuvas, que não têm dado trégua, do deus nos acuda! Aquilo era o fim do mundo!!! “É a volta de Jesus”, disse-me uma senhorinha assustada. E eu, pensando comigo: Jesus não faria isso, não traria tanto sofrimento assim... Aquilo era coisa do capeta, de satanás em conluio com os homens.
Mais triste que ver os morros desbarrancando, levando árvores, muros, casas e tudo o que nelas se encontrava, é saber das vidas que se perderam em meio àquele mar de escombros e desespero. Em Betim, cidade fortemente atingida pelas águas, seis pessoas morreram vítimas dos deslizamentos de encostas: um senhor, velho conhecido na região do Teresópolis, de 43 anos; uma jovem de apenas 17; do outro lado da cidade, um casal e sua filhinha, de 1 ano; e, na casa vizinha, outro homem. Vidas ceifadas prematuramente, sob uma chuva forte e constante, a maior registrada nos últimos 112 anos.
O risco ali era iminente, e a população precisaria abandonar suas casas. Muitos se recusavam a sair. A Defesa Civil trabalhou diuturnamente com os bombeiros, alguns deles que vivenciaram de perto a tragédia em Brumadinho. Não havia tempo a perder. Já prevendo situações de risco, meu marido, atual prefeito de Betim, por motivo de segurança, decretou ponto facultativo e pediu para que também as empresas da região liberassem seus funcionários. A imprensa já alarmava com alguns dias de antecedência o que estava por vir. E, desde então, o trabalho tornou-se uma constante.
Se não fosse pelas tantas intervenções da Defesa Civil em conjunto com as diversas secretarias, numa espécie de mutirão, a coisa poderia ter sido bem pior. Felizmente, já no primeiro ano de mandato, uma bacia de contenção fora construída numa região conhecida por seus consideráveis alagamentos, onde o rio Paraopeba costuma correr sem cerimônias. Sem a bacia, só Deus para saber o que seria daquela população pobre e sofrida.
Aqui estou, retornando de um dos abrigos onde famílias inteiras, que tiveram suas casas atingidas ou declaradas em situação de risco, se alojam. Todos sob o mesmo teto, dividindo, às vezes, os mesmos cômodos, enquanto aguardam que engenheiros e Defesa Civil definam se os moradores podem ou não retornar às suas casas ou, então, caso contrário, se precisam receber seus aluguéis sociais. O local é provisório. Crianças não entendem a dimensão do problema, brincam como se estivessem numa colônia de férias. Vários brinquedos foram doados e distribuídos: bolas, bonecas, carrinhos...
À tarde, animadores voluntários com suas roupas coloridas fazem a alegria delas. Aguardo um telão que virá ainda nesta semana para distraí-las com filmes e desenhos animados. Para os adultos, as orações da tarde promovidas por pastores voluntários e servos da Igreja Católica. Ali o Deus é o mesmo, e cristãos buscam conforto em meio ao caos que se criou.
Além dos mantimentos e das roupas doadas, procuramos levar esperança e palavras positivas, dispondo-nos a ouvir com atenção as histórias sofridas da grande maioria vinda do interior em busca de trabalho e melhor qualidade de vida. Ao chegarem, vem a desilusão, o emprego não aparece, os poucos recursos se esvaem, e a impossibilidade de morar em lugares mais seguros se instala. É quando os aglomerados, com seus desfiladeiros, becos estreitos, carências e dificuldades oriundas da pobreza, se tornam a única opção.
Na televisão, as notícias das tragédias não param. Descobrem, assim, que não estão sozinhos nas adversidades. Na tela, cidades que ainda hoje se encontram submersas. Móveis, roupas, utensílios... nada lhes restou.
E, indiferentes a tudo, as crianças correm em meio aos latidos dos cães que vieram acompanhando seus donos. Brincam em conjunto, assim como eu, meus primos e irmãos fazíamos nos dias de chuva. Só que, quando ela passava, retornávamos felizes aos nossos banhos quentes e às camas acolhedoras. Enquanto, ali, mesmo que termine, a chuva não passa e nunca mais passará. O rastro de lama é gigante. E se estenderá pelos anos.