Laura Medioli

Laura Medioli

Laura Medioli é escritora e presidente da Sempre Editora, responsável pela publicação dos jornais Super, O TEMPO e O Tempo Betim, além da rádio FM O TEMPO e do portal O TEMPO. Formada em estudos sociais, Laura já atuou como professora e se dedica de forma intensa hoje à causa da proteção animal.

LAURA MEDIOLI

Essas incríveis mulheres

Tento explicar de maneira simples os períodos férteis. E elas, rindo, vêm me contar seus casos ou, cheias de preocupação, suas dúvidas e seus medos

Por Laura Medioli
Publicado em 10 de março de 2019 | 04:30
 
 
 
normal

Por mais de dez anos, participei ativamente de trabalhos voluntários em algumas vilas e aglomerados da Grande Belo Horizonte. Desde menina, acompanhando minha mãe, acostumei-me a frequentar ambientes carentes e a descobrir ali seus mais ricos valores humanos.

Experiências foram centenas, e confesso que hoje, relembrando histórias, me bate certa saudade. Saudade do tempo em que, mesmo à noite, podia andar sozinha nos becos ou rodeada por crianças, em permanente algazarra, que me pediam balas e me chamavam de “tia”. De moradores que me conheciam pelo nome e me abriam suas portas para um cafezinho.

Já tomei muito café e ouvi muitas histórias. A conta de luz atrasada, o companheiro que sumiu no mundo ou que simplesmente se juntou com outra, a filha adolescente grávida sabe-se lá de quem, o trabalho que não vem, a saúde que anda mal. O forasteiro maníaco amedrontando as crianças na hora de irem à escola, o porco imundo e magricela que invade a cerca vizinha, o pit-bull amarrado ameaçando se soltar.

A meninada na rua exposta ao esgoto aberto. Os bares vendendo cerveja e cachaça, pais irresponsáveis que se esquivam da pensão. Sinucas rasgadas, truco nas calçadas: “Seeeeeis só, pato!!!”, gritam os homens, enquanto as mulheres observam, mudas, cuidando dos filhos, lavando as roupas, costurando, fazendo salgados pra fora, colocando comida em casa. Determinadas, sem medo, elas tocam o barco. Mulheres incríveis, que, ao longo dos anos, aprendi a respeitar.

O imóvel encontra-se fechado, doação antiga de uma entidade religiosa. Sem água, sem luz, sem utilidade. Resolvemos reabri-lo, montar ali a sede de uma associação. Pagamento das contas atrasadas, novas telhas, portas, janelas. A construção de uma escada que a criançada não deixa. O pedreiro quer desistir. Enquanto coloca a massa, a meninada observa. A escada está pronta, e, no dia seguinte, um amontoado de cimento espalhado. O pedreiro já não sabe o que fazer. Chamo os garotos e dou a eles uma missão: “Estão vendo esta escada? Quero que tomem conta dela. Não deixem que ninguém a estrague. Confio em vocês!” Finalmente, a escada intacta. Além das mulheres, um exército de garotos a nos ajudar. As paredes são pintadas em esquema de mutirão. Os homens lá fora, rindo e jogando truco, enquanto nós, em cima de mesas e cadeiras, fazemos a nossa parte. Um ou outro, mais consciente, vem em auxílio. Às vezes, perdia a paciência e ia pra rua. “Pô, gente! Não estão vendo que precisamos de ajuda?” E eles, indiferentes, continuavam seus jogos.

O salão é inaugurado por um senhor “derramado”, que, finalmente, foi descansar. O velório dura a noite inteira. Depois, outros mortos. Idosos, crianças... Como doía ver os caixõezinhos brancos. Ao lado, mães transtornadas pelo sofrimento. A chegada do ônibus, o cemitério, dor, choros e desmaios.

Invariavelmente nessa ordem. O salão não serve apenas de velório. Ali se faziam reuniões, debatiam-se questões comunitárias, como a formação de uma entidade que representasse os moradores do local.

Meninas de 12 a 16 anos mostram os ventres avolumados. Nem sequer se dão conta da responsabilidade que carregam. Faltam-lhes maturidade, idade, trabalho, perspectivas. Mais um filho para a mãe criar.

Filhos e netos se misturam num ambiente pequeno e carente. Convido um ginecologista acostumado a falar sobre controle de natalidade. As palestras feitas à noite enchem o salão. As garotas se interessam, fazendo perguntas. No fim das tardes, sentava-me com as meninas nas calçadas para jogar conversa fora e tratar de assuntos femininos. Tento explicar de maneira simples os períodos férteis. E elas, rindo, vêm me contar seus casos ou, cheias de preocupação, suas dúvidas e seus medos.

Camisinhas e DSTs eram os assuntos do dia. Entristecia-me ao ver meninas de saias curtas carregando pelas ruas seus recém-nascidos.

O salão comunitário, devido à necessidade, um dia transformou-se em creche. “Recanto da Laurinha” foi como o batizaram. Sensibilizada, agradeci às mães – homenagens assim jamais serão esquecidas. O espaço tornou-se pequeno para o grande número de crianças, e a creche, enfim, teve que ser transferida.

O tempo passou. Aos poucos, fui renunciando às minhas atividades nas cinco comunidades em que escolhi trabalhar.

A violência e o terror impostos pelo tráfico me afastam. Quinze anos de experiências e aprendizagens deixam marcas. Deixam saudades... E me lembro do salão que ajudei a montar e que tantas vezes frequentei. Fechado? Esquecido? Ou, ainda, utilizado para velar os corpos? – hoje, quase sempre, de jovens, mortos por overdose ou balas dirigidas por quem se sentiu prejudicado num acerto de contas. Ao lado deles, as mães, transtornadas pelo sofrimento. Silêncio, tristeza e medo. Muito medo.

Na semana em que se comemorou o Dia Internacional da Mulher, o meu carinho e o mais profundo respeito a elas: essas sofridas, maravilhosas e incríveis mulheres!

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!