LEONARDO BOFF

A encíclica ‘Lumen Fidei’ e as crises de fé do homem de hoje

Chega como sendo de Francisco, mas escrita por Bento XVI


Publicado em 26 de julho de 2013 | 03:00
 
 
 
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A carta encíclica “Lumen Fidei” chega como sendo de autoria do papa Francisco. Mas, notoriamente, foi escrita pelo papa anterior, agora emérito, Bento XVI, que queria escrever uma trilogia sobre as virtudes teologais. Escreveu sobre a esperança e o amor, mas faltava sobre a fé, o que fez agora, com pequenos complementos do papa Francisco.

A encíclica não traz nenhuma novidade espetacular que chame a atenção da comunidade teológica, do conjunto dos fiéis ou do grande publico. É um texto de alta teologia, rebuscado no estilo e carregado de citações bíblicas e dos santos padres. Vê-se claramente a mão de Bento XVI, especialmente em discussões refinadas de difícil compreensão, manejando expressões gregas e hebraicas, com sói fazer um doutor e mestre em sala de aula.

Seguramente, não serão compreendidas pelo simples fiel. É um texto dirigido para dentro da Igreja. Fala da luz da fé para quem já se encontra dentro do mundo iluminado pela fé. Nesse sentido, é uma reflexão intrassistêmica.

No texto, só falam autoridades europeias. Não se toma em consideração o magistério das Igrejas continentais, com suas tradições, teologias, santos e testemunhos da fé. Cabe apontar esse solipsismo, pois na Europa vivem apenas 24% dos católicos; o resto se encontra fora, 62% dos quais no assim chamado Terceiro Mundo. A teologia é pluralista e não está mais concentrada na Europa, mas isso não é aproveitado.

O fio teológico que perpassa a argumentação é típico do pensamento de Joseph Ratzinger como teólogo: a preponderância do tema da verdade aparece de forma persistente. Em nome dessa verdade, se contrapõe à modernidade. Tem dificuldade em aceitar um dos temas mais caros do pensamento moderno: a autonomia do sujeito e o uso que faz da luz da razão.

Não demonstra aquela atitude tão aconselhada pelo Concílio Vaticano II, que seria, nos confrontos com as tendências culturais, filosóficas e ideológicas contemporâneas, identificar primeiramente as pepitas de verdade que nelas existem e, a partir daí, organizar o diálogo, a crítica e a complementaridade.

Para Ratzinger, o próprio amor vem submetido à verdade, sem a qual não superaria o isolamento do “eu”. Contudo, sabemos que o amor tem suas próprias razões e obedece a outra lógica, diversa, sem ser contrária àquela da verdade. O amor pode não ver claramente a realidade, mas a vê com mais profundidade. Sem o amor, só a verdade é insuficiente para alcançar a salvação. Numa linguagem pedestre, eu diria que o que salva não são prédicas verdadeiras, mas práticas efetivas.

Na sua parte final, a atmosfera é outra. Vê-se aí a mão do papa Francisco, pois se nota uma notável abertura pastoral que se compagina mal com as partes anteriores, fortemente doutrinárias. A atitude é mais modesta: “A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas é uma lâmpada que guia nossos passos na noite, e isso basta para o caminho”.

Mas constata-se na encíclica uma dolorosa lacuna: não aborda as crises da fé do homem de hoje, suas dúvidas, suas perguntas a que a própria fé tem dificuldades em responder: onde estava Deus no tsunami que dizimou milhares de vidas? Como ainda ter fé depois dos milhões de mortos nos campos nazistas de extermínio e nos pogroms soviéticos? A encíclica não oferece nenhum elemento para respondermos a essas angústias. Crer é sempre crer, apesar de... A fé não elimina as angústias de um Jesus que grita na cruz. A fé tem que passar por esse inferno e transformar-se em esperança de que para tudo existe um sentido, escondido em Deus. Quando se revelará? Crer que um dia vai se revelar pertence também à substância da fé.
 

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