LEONARDO BOFF

O lado humano de Fidel que tive a oportunidade de conhecer

Redação O Tempo


Publicado em 09 de dezembro de 2016 | 03:00
 
 
 
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Cada ponto de vista é a vista de um ponto. Cada pessoa ocupa um ponto neste planeta e na sociedade na qual está inserido. A partir desse ponto, vê-se a realidade que ele permite ver. Por isso, não podemos absolutizar nenhum ponto de vista como se fosse o único. É o que dá origem aos fundamentalismos e às discriminações. Tal pensamento vale aos muitos pontos de vista que se estão fazendo da saga de Fidel Castro. Nenhum ponto pode cobrir todas as vistas.

Há outro elemento a ser considerado. Cada ser humano tem sua porção de luz e sua porção de sombra. Vale dizer, cada ser humano é portador de inteligência e de um sentido de vida. Isso não é um defeito de nossa construção. É um dado objetivo de nossa realidade humana que deve sempre ser tomada em conta. Também vale quando ajuizamos a figura complexa de Fidel Castro: suas luzes e suas sombras.

Quero me referir a alguns pontos a partir dos quais se me permitiu uma vista singular de Fidel Castro. O primeiro deles é a negação do sistema imperante de viés capitalista, que diz: “Não há alternativa a ele”. Ele representa a culminância das sociedades humanas. Fidel Castro mostrou que, com o socialismo, pode haver uma alternativa diferente daquela capitalista, hoje em radical crise de autorreprodução. A fúria dos Estados Unidos contra Cuba e Fidel, de tentar destruir o socialismo cubano, era para mostrar que não pode haver uma alternativa. Bem ou mal, com os defeitos que conhecemos, o socialismo se apresenta como outra forma possível de organizar a sociedade.

Um segundo ponto a ressaltar foi seu interesse pela Teologia da Libertação. Chegou a confessar que, se em seu tempo houvesse a Teologia da Libertação (só começou partir de 1970), teria assumido essa leitura para montar a sociedade cubana. Sob pressão da Guerra Fria, foi obrigado a ficar do lado da URSS e daí teve que assumir o marxismo.

Outro ponto relevante foi o convite que me fez, durante o tempo do “silêncio obsequioso” que me foi imposto em 1984 pelo ex-Santo Ofício: passar as férias com ele na ilha para aprofundar as questões da religião, da América Latina e do mundo. Efetivamente visitamos toda a ilha em conversações que iam noite adentro. Anotei quase tudo, pois queria transformar o material em um livro. Dias após minha volta de Cuba, deixei os escritos no bagageiro do carro, que foi arrombado num momento em que me distanciei por alguns minutos. Não levaram nada, apenas as anotações. Minha suspeita é que órgãos de segurança daqui ou de fora sequestraram o material.

Há outro dado que mostra a dimensão de ternura de Fidel Castro, coisa que muitos testemunham. Tenho uma sobrinha com um tipo de reumatismo que nenhum médico conseguia tratar. Falei com Fidel se era possível tratá-la em Cuba. Pediu-me todos os laudos médicos daqui. Ele mesmo se encarregou de falar com os médicos cubanos. Efetivamente, não havia cura. Cada vez que me encontrava, a primeira coisa que perguntava era: “Como vai a Lola, sua sobrinha?”. Essa memória carinhosa e terna não é frequente em chefes de Estado. Geralmente, onde predomina o poder, não vigora o amor nem floresce a ternura. Com Fidel era diferente. Alegrou-se enormemente quando lhe contei que um médico brasileiro inventou uma vacina cujo efeito colateral era curar esse tipo de reumatismo.

São pequenos gestos que mostram que o poder não precisa fatalmente obscurecer essas dimensões tão profundas que são o enternecimento e a preocupação pelo destino do outro. O legado de sua pessoa carismática permanecerá como referência para aqueles que se recusam a reproduzir a cultura do capital e as injustiças que a acompanham, de ordem social e ecológica.

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