O evangelista Gabriel Poetiso me pede que eu defenda a bela loura que está sendo acusada de golpes em executivos. Meu amigo recorda que Vinicius de Moraes " plural em moral e singular na arte de poetizar " versejou que a beleza é fundamental, daí pediu perdão às feias.
Além disso, a moça é universitária, de família importante em Porto Alegre, fala vários idiomas e tem voz grave, firme e sabe sorrir, dentes belos e perfeitos. Por causa disso merece a liberdade. Há muitos gatunos soltos no Brasil, logo mais uma ladra chique não fará diferença. Que ela fique fora do cárcere.
"Cadeia foi feita pra gente burra e pobre", ressalta Gabriel Poetiso. Ele até nutre simpatia por advogados, como o defensor da loura gaúcha. O doutor tem nome japonês e cara de nissei.
Abraçou a moça de 22 anos, rebuçou a cabeça dela com o paletó. Mas a jovem alega que quer continuar aparecendo na mídia, a fim de provar sua inocência. O namorado é quem a envolveu no crime, sem querer.
Ato involuntário. Tudo começou com a troca de veículos importados. Nessa barganha houve equívocos. Engano acontece no troca-troca. Gabriel Poetiso cita o jornalista Pimenta Neves que matou a bela namorada e está em liberdade. Faz analogia entre os crimes de golpe financeiro e de matar alguém.
Ele raciocina: quando é filha que mata pai e mãe, como no caso de outra loura, universitária e bonita, poliglota e rica, a assassina merece liberdade porque já está castigada pela orfandade. Essas duas louras provam que lourice não significa burrice. São inteligentes e cultas.
Burra e ignorante, primária e feia é aquela mulher morena que furtou pequeno pote de manteiga na mercearia. Foi presa, espancada e perdeu a visão de um olho. Serve de exemplo para o mundo. No Brasil cumpre-se a lei.
Destaco as palavras sábias de meu amigo Gabriel Poetiso, evangelista de documento assinado por pastor de igreja famosa.
O evangelista tem pouco estudo, mas é inteligente e tem dons exegéticos. Estudou hermenêutica em apostilhas resumidas com teses sobre as leis canônicas e os códigos jurídicos da atualidade, isto é, em vigência em nosso país.
Gabriel Poetiso me diz que Jesus Cristo ensinou que devemos perdoar os erros de nossos amigos e de nossos inimigos, de nossos conhecidos e de nossos desconhecidos. Não devemos julgar, a fim de que nós próprios não sejamos também julgados.
Divulgo as idéias do evangelista, sem dar meu palpite sobre temas tão discutíveis. Gabriel Poetiso defende os erros de português do presidente Lula, porque um governador aí disse na TV que "houveram" progressos em sua permanência no cargo. Lula sabe fazer troca"troca com o PMDB.
O partido lhe dá apoio e o presidente dá aos políticos do partido os cargos de confiança. O país regride aos tempos das capitanias hereditárias, segundo Gabriel Poetiso. O regresso não quer dizer atraso. Se o Brasil progrediu, diz Gabriel Poetiso, é porque o passado deve ser imitado.
Não entendo bem os argumentos de meu amigo evangelista, no entanto reconheço que ele está com a maioria dos brasileiros. Meu diálogo com Gabriel Poetiso chega ao fim. Ele se despede, reiterando o pedido: "Defenda a loura gaúcha".
Telefono ao amigo Joel Macieira que me aconselha a que eu divulgue o ponto de vista do evangelista, sem ficar contra seus ideais. Nem a favor deles também.
MANOEL LOBATO - Anatomia básica
Eu estava sentado na parte da frente do ônibus, em assento reservado, mas pude notar o constrangimento da moça em pé, pouco distante de mim, na outra parte do ônibus, depois da catraca.
Encostado em suas costas, um marmanjo de braços tatuados, boné virado para trás, se aproveitava do excesso de passageiros e fazia libidinagens. A jovem trazia na mão direita o livro intitulado "Anatomia Básica".
Devia ser universitária de medicina ou de farmácia ou de odontologia. Sua mão canhota segurava o balaústre, a fim de se equilibrar. Ela olhava para o moço com ar de reprovação e ódio, balbuciando palavras inaudíveis.
O rapaz fingia que nada estivesse ouvindo e permanecia em sua agressividade, obscenizando o contato de corpos. Ninguém se atrevia a socorrer a moça, embora algumas pessoas demonstrassem desagrado, com olhares furtivos. Eu também estava inquieto. Havia sussurros.
Relembrei naquele momento: certa vez observei um casal de jovens, perto de mim, dentro do ônibus em que faço pequeno trajeto todo dia quase. O rapaz exibia a erectilidade de seu membro viril, no entanto havia anuência da moça.
Ela tentava ocultar o volume da calça do namorado, lado esquerdo, e para tanto se encostava de propósito nele. Afinal o casal desceu porque a jovem segredou ao rapaz que os passageiros estavam assistindo às bolinas exageradas, como se fossem cenas de filme pornográfico.
A moça, que trazia o livro "Anatomia Básica", resolveu reagir e falou alto, para surpresa geral: "Tenha logo o êxtase paroxístico porque vou descer no próximo ponto". Houve certo rebuliço, alguns passageiros riram, outros demonstraram solidariedade à mulher, com expressões do tipo "bem-feito".
Corajosa, a universitária " só podia ser estudante de curso superior " continuou com sua revolta, uma ojeriza estampada no vocabulário precioso e específico: "Êxtase paroxístico e o clímax orgástico, o acme". As gargalhadas aumentaram com a inflexão da voz, em tom explicativo, de modo didático.
Quando o ônibus parou, logo a seguir, a moça desceu, abraçando o exemplar de "Anatomia Básica", como se quisesse provar que conhece as partes pudendas do homem. O marmanjo permaneceu no ônibus, sem exibir seus dotes anatômicos. Apenas virou a aba do boné para a frente.
Ele havia posto o boné na cocuruta com a parte da frente virada para trás. A tatuagem em seu braço esquerdo era o rosto de mulher, encimado por ideograma chinês ou japonês.
Os olhos da imagem tatuada eram orientais, olhos puxados, pálpebras semifechadas, meio caídas. Relembro agora: desço no outro ponto de ônibus. A imagem da moça tatuada se mistura com a figura da jovem que leva seu livro de faculdade.
Penso em minha decadência física e tenho inveja do moço de boné, braço tatuado. Ganho a rua em meus passos trôpegos, desguio para as bandas da esquina. Fiz curso de farmácia e relembro as aulas de anatomia básica. Meu sangue mal circula em minhas cartilagens cavernosas.
Chego à esquina, ouço pessoas que discutem futebol, palavreado de treinadores, mestres em educação física. Talvez conheçam também anatomia básica. Brasil, país do carnaval e futebol. Mulatas, louras, negras, só mulher bonita. Fealdade é simpatia. Brasileiro nasceu para brilhar. Cabeça, tronco, membros. Esporte, pensamento, luta.