MICHELE BORGES DA COSTA

Em defesa do sono tardio

Redação O Tempo


Publicado em 08 de julho de 2016 | 05:00
 
 
 
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Vivemos em um mundo que adora quem acorda cedo. Adora. Antes mesmo de aprender a olhar relógio de ponteiro ou precisar programar um despertador, a gente é cercado por mantras que dão ares gloriosos às virtudes de um madrugador.

Quem cedo levanta, cedo alcança.

Quem cedo se deita e cedo se levanta, doença, pobreza e velhice espanta.

Quem chega primeiro bebe água limpa.

Deus ajuda quem cedo madruga.

A mensagem é clara: quem não dá conta de pular da cama assim que o sol chega absoluto é um perdedor; dormir até não ser mais possível dar “bom dia” é praticamente um pecado. Por conta disso e não raramente, o sono pra quem é difícil amanhecer vai se estendendo cheio de culpa e discriminação.

Não adianta se você trabalha 12 horas por dia, faz mais atividade física do que recomenda a OMS, é responsável por 150 funcionários, faz doutorado aos 24 anos, cuida de uma penca de filhos, dança, canta e faz malabares. Se você é do tipo que faz samba e amor até mais tarde, e tem muito sono de manhã, vai ser sempre perseguido pela fama de preguiçoso.

Acontece que a ciência já provou que a hora que você sente vontade de dormir e de acordar é influenciada pelos genes e é uma condição incrivelmente difícil de mudar. Uma pessoa que simplesmente não é da manhã, provavelmente nunca vai ser, pelo menos até que os efeitos do envelhecimento comecem a se apresentar.

É duro ter o cronômetro interno permanentemente fora de sincronia com o resto das pessoas. Além de serem julgados por um comportamento que não podem controlar facilmente, os que, como eu, preferem ir dormir no meio da madrugada para acordar oito horas depois são muitas vezes confrontados com uma escolha difícil: escutar o relógio biológico ou forçá-lo a coincidir com os hábitos de quase todo o mundo. É justo?

Até aceito o sofrimento de levantar antes do desejo, se minha preferência pela vigília na calada e solitária noite deixar de ser confundida com vagabundagem. Enquanto a maioria dorme preguiçosa e merecidamente, leio, escrevo, coloco o cinema em dia, danço, elaboro diálogos que nunca acontecem, produzo.

E de manhã, se não tem ditado popular que me defenda, sigo em boa companhia com Chico Buarque, “não sei se preguiçoso ou se covarde, debaixo do meu cobertor de lã”.

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