MURILO ROCHA

A esquerda no divã

Redação O Tempo


Publicado em 10 de novembro de 2016 | 03:00
 
 
 
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Ontem de manhã, em algum consultório de psicanálise no Brasil:

– Oi, doutor.

– Bom dia!

– Como assim, bom dia? Este ano de 2016 já pode acabar. Na verdade, não devia nem ter existido. Me dá logo uma superdosagem de Rivotril para eu só acordar em 2018, 2020... Onde eu entrei neste ano saí derrotada. Na verdade, humilhada, malfalada e sem esperança.

– Olha, desde 2013 você vem repetindo esse discurso, com raras exceções.

– De jeito nenhum. Este ano foi diferente. Teve o Brexit, em junho, o impeachment, em agosto, as eleições municipais de São Paulo, Rio e BH, em outubro, e, agora, para coroar esse calvário, tem o Trump, em novembro.

– É, realmente, não foi um ano fácil, mas temos de pensar como agimos ou deixamos de agir para chegar até aqui.

– Isso é fácil. É essa onda de conservadorismo mundo afora. É xenofobia, homofobia, racismo, fanatismo religioso...

– Mas esses não seriam os sintomas? Estou tentando trabalhar com você as causas reais.

– Olha só para você ver: no Reino Unido, foram os ingleses de baixa renda, principalmente no norte do país, querendo proteger seus empregos e expulsar os estrangeiros. Nas eleições para prefeito, Kalil venceu por causa de um discurso despolitizante; no Rio, os evangélicos elegeram Crivella; e, em São Paulo, foram os coxinhas os culpados. Lá nos Estados Unidos, foram os homens brancos do interior do país e com menor grau de instrução os responsáveis por essa tragédia.

– Me parecem um pouco simplistas essas conclusões, e, ademais, é o preço da democracia, não é mesmo? Vocês vivem pregando a democracia, mas, quando algo sai diferente do planejado por vocês, ela não presta mais. Em todos esses casos, exceto o impeachment, a decisão foi pelo voto popular. E nas capitais do Sudeste, os candidatos ligados à esquerda tiveram desempenho pífio nas periferias, mostrando uma descrença ou desconexão com os partidos autoproclamados defensores dos interesses dos mais pobres.

– Você está se fazendo de bobo. A imprensa também foi decisiva para as nossas derrotas neste ano. A esquerda foi criminalizada. Foi golpe atrás de golpe. Era impossível vencer com essa manipulação descarada sobre o povo.

– Mas, no Rio, toda a imprensa apoiou o Freixo no segundo turno. E nos EUA, a mídia jogou pesado para eleger Hillary, uma conservadora tão perigosa quanto Trump. Por isso, insisto em tentarmos procurar as causas verdadeiras desses fenômenos. Isentar-se de responsabilidade e culpar o outro por todos esses insucessos parece não estar dando certo.

– Era só o que faltava. Então, a culpa por Trumps, Kalils, Dorias e Crivellas é minha. Só resta dizer que a culpa pelo impeachment também foi minha.

– Não estou afirmando isso. É você quem está falando.

– Lá vem vocês, psicanalistas, com esses joguetes de negação como uma manifestação inversa da realidade inconsciente.

– Olha, vamos terminando por aqui. Mas talvez fosse interessante pensar em como a crise econômica vem dilapidando os mais pobres e como todos esses arranjos políticos vendidos nas últimas décadas em todo o mundo não dão conta de superar essas contradições. Talvez estejamos criando falsas divisões entre a sociedade, enquanto na realidade o conflito é o de sempre no capitalismo. Os mais ricos contra os mais pobres.

– Não dá mais para continuar com essa análise ortodoxa. Vou procurar outro profissional, alguém que realmente me escute. Passar bem. Ah, antes que eu me esqueça: fora, Temer; fora, Trump.

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