O transporte coletivo por ônibus no Brasil vive uma lenta e longa crise, que ganhou feições de colapso a partir de 2020, com o isolamento social causado pela pandemia de Covid-19. Trata-se dos estertores da lógica que o fundou: o financiamento do sistema por meio da receita tarifária.
Em meados do século XX, quando os ônibus passaram a ter hegemonia como principal modo de transporte urbano no Brasil, levas de pequenos empresários iniciavam linhas – clandestinas ou regulares – certos de que o número de passageiros pagantes seria crescente ano a ano, e assim compensaria o investimento inicial.
Privilégios intocados
Vastas regiões urbanas se formaram no país a partir de linhas de ônibus precárias que viabilizavam que loteamentos sem infraestrutura pudessem ser a solução habitacional para a urbanização brasileira. Privilégios da renda da terra e das áreas urbanas valorizadas permaneciam assim intocados, nas mãos das elites de sempre.
A profusão de ônibus adquiriu maior racionalidade com a formação de grandes empresas no setor, algo que só começou a ocorrer no começo da década de 1980. A organização política e econômica desse empresário tem origens em Belo Horizonte, e representantes mineiros do setor de transportes dominaram as organizações de classe nacionais nas últimas quatro décadas.
Sistema em crise
Mas os tempos de crescimento contínuo e ilimitado da demanda chegaram a um limite ainda na década de 1990. Mudanças nos padrões de crescimento demográfico e urbano, distribuição de renda e popularização dos carros e motos contribuíram para que os ônibus perdessem sua longa hegemonia.
Assim, um sistema que nunca foi capaz de fornecer dignidade a seus passageiros já entrava em crise sendo substituído por soluções ainda mais nocivas coletivamente. Acidentes, poluição, engarrafamentos e obras viárias inúteis são a tônica desse cenário.
Entretanto, como se sabe: “crise é oportunidade”. A pandemia de Covid-19 tornou gritante a necessidade de uma nova forma de gestão e financiamento do transporte coletivo, rompendo a bolha setorizada que discutia isso. Prefeituras de todos os matizes ideológicos viram, nos últimos 4 anos, que manter o financiamento tarifário do transporte coletivo era custoso e ineficiente. O número de cidades com tarifa zero – gratuidade universal dos ônibus – passou de 15 para 108 em pouco anos, com uma população de mais de 4 milhões de pessoas beneficiadas.
Nova lógica de financiamento
A mudança é simples: centralizar o financiamento no poder público, que passa a pagar pelo custo quilométrico incorrido, em vez de passageiro transportado. A nova lógica rompe o círculo vicioso de aumento tarifário e perda de demanda e coloca o transporte no lugar de direito social que a Constituição Federal garantiu em 2015.
Evidentemente, o passe livre gera novos e enormes desafios: como controlar efetivamente a qualidade e a oferta de transporte? Como contabilizar custos reais e controlar repasses? Como planejar linhas e horários que atendam as necessidades da população – já não mais mediada pela lógica pagante?
Democratização do transporte público
O passe livre é a porta de entrada para a reformulação radicalmente democrática do transporte público, o 1° passo para que a mobilidade urbana seja de fato universal. E para criar ferramentas efetivas de controle popular é necessário desmontar as estruturas de poder econômico e político que mediam a oferta de transporte.
Não se pode mais ser refém de empresários trancando garagens ou acordos espúrios do poder público em fraudulentas licitações. É preciso deixar para trás o tempo das grandes empresas de ônibus e avançar rumo a modelos descentralizados e modularizados que tornem possível o controle público
(*) André Veloso é pesquisador colaborador do Núcleo RMBH do Observatório das Metrópoles e ativista na mobilidade urbana, doutor em Economia pela UFMG.