PAULO DINIZ

Importando medo

Enquanto vigorava a escravidão nos Estados Unidos, a porção sul desse país era notória por ter um sistema econômico fortemente baseado nessa mão de obra


Publicado em 21 de dezembro de 2021 | 04:00
 
 
 
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Enquanto vigorava a escravidão nos Estados Unidos, a porção sul desse país era notória por ter um sistema econômico fortemente baseado nessa mão de obra. Grandes fazendas dedicadas à produção de gêneros básicos para exportação dependiam inteiramente do trabalho escravo para funcionar. Dessa forma, o sul dos EUA passou a ter os negros escravizados como o seu maior grupo populacional, o que mantinha os latifundiários brancos em constante estado de apreensão.

A possibilidade de uma rebelião de oprimidos – dez vezes mais numerosos em alguns Estados sulistas – contra seus opressores alimentava o medo paranoico da pequena elite branca, levando-a a intensificar a violência com a qual impunha sua dominação. Esse medo não apenas solidificou um trauma coletivo em relação à ocorrência de distúrbios sociais, como também deixou rastros na cultura dos EUA até hoje.

A sensação de que, a qualquer momento, a ordem social pode desaparecer, jogando todos em uma luta contra todos, é uma marca típica de como os norte-americanos interpretam a sua experiência de vida em sociedade. A violência policial desmedida na repressão a protestos civis é uma forma através da qual percebemos o medo ianque de perder seus laços de convivência social.

Outra forma quase onipresente é através da cultura pop que os EUA produzem e disseminam pelo mundo inteiro. O tema da extinção da humanidade parece não cansar os produtores de Hollywood, que não cessam de lançar produtos nos quais quase todos morremos devido a uma tragédia de escala global, e os poucos sobreviventes se digladiam incessantemente. Do meteoro ao congelamento do planeta, os temas mudam mas o enredo não: em situação de crise, a maior ameaça ao homem é o seu semelhante.

O ponto central a ser destacado é que o medo dos escravocratas norte-americanos do século XIX ainda hoje é difundido mundo afora, deixando toda a humanidade um pouco menos tranquila e solidária. O medo do apocalipse e do caos social, tão presente nos filmes e nas séries ianques, é na verdade o medo que esse povo tem de si mesmo: mais especificamente, é o medo da explosão violenta das contradições e desigualdades que marcam a sua sociedade.

Não há exagero nessa afirmação, uma vez que é na cultura que se reflete o pensamento – e se baseia o comportamento – dos grupos humanos. Na medida que absorvemos elementos de uma cultura alheia, também importamos seus medos, fobias e defeitos – que se somam àqueles já inerentes à nossa própria cultura. Nem toda expressão de arte é inocente, no que tange aos valores de convivência coletiva e civilidade que difunde e estimula.

Enquanto enfrentamos uma pandemia que vitima milhares, destrói os meios de vida de milhões e semeia incerteza e angústia sobre todos os brasileiros, já temos muitos elementos de medo e insegurança em nosso dia a dia. Convém mantermos vigilância, portanto, para não agregarmos às nossas machucadas existências os traumas que – a princípio – não fazem parte de nossa história e cultura. Nossa saúde mental agradece.

 

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