PAULO DINIZ

O populismo catalão: em busca dos piores momentos do século XX

Redação O Tempo


Publicado em 17 de outubro de 2017 | 03:00
 
 
 
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Os eventos em torno da independência da Catalunha têm dado oportunidade para que figuras de destaque se manifestem sobre o tema. Um exemplo foi o futebolista Gerard Piqué, que postou em seus perfis nas redes sociais uma foto em que votava na consulta popular convocada pelo governo regional sobre a separação em relação à Espanha. Chama atenção a maneira como Piqué replicou o discurso do governo catalão: ao povo dessa província, deveria ser dado o direito de votar e assim expressar democraticamente sua vontade em relação ao futuro. Após a vitória do independentismo, a propaganda catalã passou a exigir que o resultado do pleito seja acatado em âmbito nacional e internacional, pois qualquer outra atitude que não “ouvisse o povo” seria repressiva.

Por mais que a relação entre voto e democracia seja intuitiva, essa não é uma ideia completa. O voto, canal pelo qual milhões de pessoas podem escolher entre as opções que lhes são apresentadas, é mesmo indispensável a qualquer democracia. Porém, votar não é condição suficiente para que se tenha uma democracia: em algumas das ditaduras mais cruéis do século XX, praticou-se o voto com frequência, assim como durante os governos militares brasileiros. Mais importante do que a realização do voto em si é considerar as condições nas quais essa prática ocorreu: se houve liberdade de circulação de ideias, mecanismos de isolamento do sistema político em relação a desigualdades socioeconômicas, ou mesmo se existe no eleitorado capacidade de compreensão das propostas de partidos e candidatos.

Considerando a democracia um conjunto amplo de fatores sociais e institucionais, falta à votação da Catalunha o embasamento legal mais básico para que se possa considerá-la democrática. Não apenas a legislação espanhola veta claramente iniciativas seccessionistas, como o tribunal constitucional da Espanha declarou explicitamente a ilegalidade do movimento liderado pelo governador Carles Puigdemont. Por mais que não pareça, proibir que alguns assuntos sejam levados à votação popular constitui prática essencialmente democrática: trata-se de uma defesa das minorias contra a possibilidade de que a maioria da população as oprima, fazendo uso de sua vantagem numérica.

O pacto constitucional, elaborado a partir da laboriosa construção de um consenso nacional, preserva algumas questões da influência direta das urnas. Assuntos sensíveis como os direitos humanos, por exemplo, são mantidos a salvo da opinião volátil que a multidão pode ter em algumas conjunturas. A unidade nacional, tanto na Espanha como no Brasil, também faz parte desse conjunto de temas especiais. Dessa forma, colocar em votação matérias que são objeto de proteção constitucional explícita se constitui como um atentado à democracia, sendo que o simbolismo romântico do povo diante das urnas não corrige essa distorção legal.

Foi nesse sentido que o presidente do Parlamento Europeu e o vice-presidente da Comissão Europeia se pronunciaram, poucos dias após a espalhafatosa eleição promovida pelo governo catalão: na visão das principais instituições da União Europeia, foi o respeito à ordem constitucional vigente que permitiu ao continente europeu superar décadas de guerras e ditaduras e, na segunda metade do século XX, prosperar com paz e estabilidade. Fora desse marco, referência do Estado democrático de direito, não haveria mais do que a volta às turbulências do passado.

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