PAULO DINIZ

Sobre fogo e cenouras: gestão é mais complexa do que parece

Um candidato simpático tem mais chances de chegar ao poder


Publicado em 01 de maio de 2018 | 03:00
 
 
 
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A cidade norte-americana de Centralia, na Pensilvânia, pode ser descrita como uma reprodução do inferno. Erupções de fogo e gases venenosos ocorrem com frequência e em locais aleatórios, causando destruição de patrimônio e vítimas mortas. Quase toda a população já abandonou o município: apenas sete indivíduos teimam em habitar entre as chamas. Essa maldição teve início em 1962, quando o então prefeito decidiu incendiar o lixo acumulado no depósito da cidade, localizado em uma antiga cava de mineração. Ocorre que, num arroubo de incompetência, o mandatário local desconsiderou a enorme rede de túneis que se expandia por sob a cidade, interligada às antigas minas de carvão. O fogo colocado no lixo se alastrou rapidamente pelos subterrâneos, encontrando combustível para queimar indefinidamente. Nas décadas seguintes, todas as tentativas de debelar o fogo foram frustradas.

A incompetência do prefeito de Centralia corrobora as queixas que a maioria das pessoas costuma tecer em relação ao Estado. Culpar o poder público motiva um profícuo folclore no qual o Estado pune o povo com seu poder desmedido e visão distorcida da realidade. Entretanto, apesar de correta, essa visão não é completa.

Em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, uma onda de revoltas ocorreu devido aos brindes que as escolas municipais distribuíram a seus alunos na última Páscoa: algumas cenouras e uma receita de bolo para utilizá-las. As redes sociais registraram milhares de reclamações sobre o assunto, que foi percebido como descaso com as crianças do município, pois estas não ganharam chocolates. A resposta da Secretaria de Educação afirmava que, além de incentivar o consumo de alimentos saudáveis pelas crianças, a distribuição de cenouras visava evitar que fosse perdido um grande estoque desse ingrediente, que havia sido encomendado em quantidade excessiva por engano. Dois bons argumentos que, entretanto, o prefeito não se dispôs a apoiar publicamente: sensível a possíveis consequências políticas, pediu desculpas em carta à população.

Essas duas situações ilustram o quão complexo é o ambiente das políticas públicas. Frequentemente comparado com empresas privadas, o Estado possui desvantagens estruturais, com as quais dificilmente os negócios particulares têm que lidar: por isso, a comparação é sempre injusta.

Como se vê no caso de Centralia, a escolha do principal gestor público do município não precisa levar em conta a qualificação técnica dos pretendentes ao cargo: em democracias, como a norte-americana e a brasileira, o prefeito é aquele que obtém o maior número de votos. Assim, um candidato simpático tem mais chances de chegar ao poder do que um especialista em resíduos sólidos. A democracia não é exatamente o melhor processo para selecionar os mais competentes, apesar de continuar sendo indispensável para a vida coletiva.

Já o caso de Duque de Caxias nos mostra que a sabedoria popular nas escolhas coletivas não é a regra que o senso comum afirma ser. Alimentação saudável, apesar de benéfica, não constitui a preferência da maioria. Dessa forma, muito do que o Estado nos oferece, em termos de políticas públicas equivocadas, parte de demandas coletivas que, efetivamente, não beneficiam a população – como os chocolates.

Compreender a forma como Estado e sociedade se relacionam, principalmente por meio da democracia, é essencial para que todo esse mecanismo funcione melhor para a coletividade.

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