PAULO DINIZ

Uma carta e um recado

O fantasma do rompimento da legalidade por meio das armas vem se tornando presente no cenário político brasileiro


Publicado em 03 de agosto de 2021 | 05:00
 
 
 
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Em outubro de 1921, o Brasil se encontrava em acirrada campanha presidencial, quando foram publicadas duas cartas atribuídas ao governador mineiro Arthur Bernardes e recheadas de ofensas aos militares e a Nilo Peçanha – seu concorrente na disputa pelo comando do país. A celeuma política em torno desse tema foi enorme, e o debate sobre a legitimidade das cartas se estendeu por meses: Bernardes, que sempre negou a autoria, viu surgir contra si uma consistente oposição militar.

Ainda antes da votação que levaria Arthur Bernardes ao poder em 1922, os falsários que forjaram as cartas assumiram a autoria da trama e sua motivação política. Isso não foi suficiente para mudar o posicionamento que o Clube Militar havia assumido, contrário ao candidato mineiro. Há historiadores que veem nesse episódio um ponto importante na trajetória que levaria ao crescente envolvimento de militares na política, culminando com o golpe militar de 1964.

Um século depois, o Brasil se encontra em situação praticamente idêntica – igualmente obscura e com o envolvimento de personagens semelhantes. Discute-se o suposto recado que o Ministro da Defesa, General Braga Netto, enviou ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira: as eleições de 1922 só acontecerão se for adotado algum mecanismo de voto impresso que permita a auditoria manual dos resultados do pleito.

Especula-se sobre a veracidade do recado, sobre quem teria sido seu interlocutor, sobre o respaldo dos comandantes das Forças Armadas, assim como a respeito da coincidência de o presidente Jair Bolsonaro ter feito afirmação de conteúdo semelhante no mesmo dia.

Braga Netto nega a autoria do recado, o que não impediu que boa parte da classe política se unisse em torno de posicionamento contrário a tais ameaças à democracia brasileira.

O fantasma do rompimento da legalidade por meio das armas vem se tornando presente no cenário político brasileiro: nesse contexto, a força bruta só pode ser contida por uma reação semelhante em sentido contrário – lógica que dá franca vantagem aos militares.

Um fato importante é que o fantasma do golpe militar pode ter influência na campanha de 2022, pressionando em direções opostas. No campo governista, não é novidade que Bolsonaro utiliza suas controversas credenciais militares para seduzir os saudosos do regime de 1964, sabendo que esses não são poucos e que, em média geral, o brasileiro ainda não desenvolveu apego profundo pela democracia como um valor. Já na oposição, essa mesma vinculação entre Bolsonaro e o golpismo militar é aventada como argumento contrário ao atual presidente, destacando o risco de sua reeleição.

O fato preocupante é que, quanto mais se fala da possibilidade de um golpe militar, mais concretude se dá ao assunto. Discutir a credibilidade dos militares para interferir na política tem o efeito instantâneo de dar credibilidade para que os militares interfiram na política – afinal, todo discurso suscita resposta. O recado que nós devemos levar a sério é o que vem da história.

 

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