PAULO PAIVA

Livres para sonhar

Ontem. Era o Brasil da hiperinflação. Os salários não acompanhavam a corrida desenfreada dos preços


Publicado em 29 de novembro de 2019 | 03:00
 
 
 
normal


Ontem. Era o Brasil da hiperinflação. Os salários não acompanhavam a corrida desenfreada dos preços. Os ricos compravam freezer para estocar comida perecível e mantinham suas despensas sempre cheias de alimento. Seus salários, guardados nos bancos com correção diária, eram protegidos da inflação. Os pobres, a grande maioria, quando recebiam seus salários, corriam ao mercado para comprar o que podiam. Sua poupança era a antecipação, para sexta-feira, da feira de sábado.

Seu Luiz, trabalhador da construção civil, era mestre nessa estratégia. Recebia semanalmente seu salário e deixava quase tudo no mercado para não faltar comida em casa até a semana seguinte. A inflação não deixava espaço para algum sonho de consumo. Era tudo contado e recontado.

No dia do aniversário de 6 anos de seu filho, Zico, apelido que lhe deu porque o menino já levava jeito no controle da pequena bola nas brincadeiras na frente da casa, passou no mercado e, além da feira normal, levou uma Coca-Cola grande. Antes, porém, parou na banca de jornal e comprou de presente uma camisa do Flamengo. Extravagância. Quem sabe o menino teria futuro melhor. O sonho é livre.
Hoje. Seu Luiz está aposentado e com a consciência tranquila porque Zico estudou, mesmo trabalhando, formou-se em uma faculdade, o que ele jamais poderia sonhar. Recorda-se daqueles tempos difíceis. Agora inflação quase não existe e até pode arriscar a compra de algum bem, dividindo em parcelas, sem juros.

Oba. Soube que a taxa de juros é a mais baixa da história do país e que isso vai ajudar a economia a voltar a crescer. Ótimo. A única coisa que o preocupa é o Zico. Coitado, formou-se, mas ainda não encontrou emprego. Vive fazendo bicos, aqui e acolá, envia currículo para todo lado, mas emprego, nada.

Também não entende bem a queda dos juros. O cartão de crédito é coisa do diabo. Coça no bolso quando sonha com alguma outra extravagância. Mas não usa mais. Quando usou, foi um desastre. Os juros levaram vários meses de seu salário. Nunca mais. Juro baixo deve ser lá para o governo ou para os ricos. Não parece coisa para os pobres. Mas, se vai ajudar a criar empregos, é coisa boa.

Zico tem esperança de encontrar um emprego. Disseram-lhe que agora a economia vai crescer e oportunidades vão jorrar. Até sonhou com um trabalho com carteira assinada, batendo ponto antes de voltar feliz para casa. Lá, Weverson, seu filho, estará aguardando-o com um sorriso no rosto. Sonha em ver seu garoto vivendo no paraíso, em um país sem inflação e com bom emprego.

O sarampo atingiu Weverson. Doente, o menino faleceu. No seu enterro, Seu Luiz chorava só em um canto e, com as mãos trêmulas sobre o caixão coberto com a surrada camisa do Flamengo, que guardava como troféu, Zico dizia baixinho: “Esse menimo agora será livre para sonhar no paraíso”.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!