João estava ali, estatelado no chão. Entre os carros. Imóvel. No asfalto frio. Tentando entender o que havia ocorrido. De longe, até parecia morto. Mas ainda respirava. Franzia a testa, demonstrando alguma dor, enquanto aguardava a chegada do socorro. Os minutos pareciam horas naquele dia cinzento. Pessoas estranhas o olhavam de cima para baixo. Um amontoado de gente. Povo curioso. E o João ali, aflito, tentando ficar alheio àqueles semblantes tensos. Percebeu que alguns sussurravam, e outros ligavam desesperadamente para pedir ajuda. Ele pensou que era sinal de que a coisa não devia estar nada bem... Tentava falar, mas não conseguia. Estava confuso. Para piorar, começou a sentir os pingos de chuva. Ia apagar. Apagou.
Se soubesse que estava à beira da morte, João faria diferente. Pelo menos é o que ele imaginava no meio daquela confusão mental, antes do apagão. Ele não queria morrer. Embora estivesse bastante desgostoso com a vida nas horas que antecederam o acidente. Amuado mesmo. Era um dia difícil. Aliás, um período conturbado. Ainda assim, só tinha 44 anos (praticamente 45) e, apesar de não ter soluções para os percalços dos últimos tempos, considerava-se novo. Se tivesse que ir, que as relações estivessem mais organizadas, que pazes fossem seladas e que algumas frases fossem ditas. De preferência, que as palavras que não fossem tão duras nem os tons, tão ríspidos.
Naquela altura, a espera pelo socorro para as pessoas no entorno de João era mais angustiante. Elas olhavam para o João sem saber nada sobre aquele provável corpo no chão. Ninguém sabia que se tratava do filho da dona Angela de Sá, que era morador do mesmo bairro havia quase 30 anos, pai de duas meninas lindas e temperamentais, saído de uma separação recente e, atualmente, sem amor e sem emprego. Foi “despejado” da empresa onde trabalhou por quase 20 anos. As pessoas desconheciam o quanto ele cozinhava bem, nem o quanto ele se esforçava, atualmente, numa dieta para melhorar a autoestima. Foi a mulher que o deixou.
Naquela manhã, horas antes do acidente, estava desgostoso. Acordou cedo, mas não conseguiu sair da cama. Não sentiu fome. Olhava o dia nublado pela fresta da janela, no quarto dos fundos do apartamento da mãe. Desde que ele e os irmãos se casaram, dona Angela se mudou para um imóvel pequeno, no mesmo bairro. Não esperava receber “os meninos” de volta. Tinha uma entrevista de emprego. Foram três no último mês. Sentia-se inútil. Sem projetos. A ex-mulher estava com um “cara mais feio e também mais rico”, o que o fazia sofrer. As filhas ligavam pouco para saber como ele estava. Viviam a fase dos amigos.
Arrastado simplesmente pelo horário do compromisso, levantou-se e saiu. Entregou o currículo, falou novamente sobre suas melhores qualidades (muitas em que ele nem acreditava mais) e despediu-se ouvindo a frase clichê: “Qualquer coisa, entraremos em contato”. Desceu pelo elevador e resolveu andar a pé e sem rumo pelo centro. Tinha vendido o carro no mês passado. Achou melhor guardar dinheiro. Viu que ia chover. Nem se importou. Sentia um aperto no peito e uma vontade danada de chorar. Pensava no que fazer da vida... E, de repente, já estava caído no asfalto. Provavelmente nem entendeu direito quando foi atingido pelo ônibus e voou alguns metros. Foi tudo muito rápido até perder a consciência.
Mas João não morreu. Não era sua hora. Quando voltou a si, já no hospital, viu outro rosto estranho. Dessa vez, era só um (o que já era um alívio). Não era o de sua mãe nem o das filhas. Parecia um anjo e se apresentou como Marta. Serena, sorriu, como se estivesse feliz por ele estar vivo. O que João não lembrava, ainda, é que o atropelamento não ocorreu por distração dele. Ao contrário, foi herói. Por instinto, entrou na frente do ônibus para “salvar” a mulher desconhecida. Também não sabia que Marta andava sem rumo e angustiada. Como ele, ela buscava um recomeço. Talvez novos desejos estejam por vir. Mas essa é outra história....
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