RENATA NUNES

No escuro da alma

Redação O Tempo


Publicado em 02 de outubro de 2015 | 03:19
 
 
 
normal

Foram pelo menos 72 horas sem uma fresta de sol passar pelas cortinas. Objetos revirados pela casa. Roupas no chão. Vasilhas sujas na pia, na mesa e até sobre a cama. Garrafas de vinho pelo chão. Os congelados na geladeira já estavam acabando. Os livros retirados da estante ficaram espalhados. Nenhum dos diversos títulos parecia servir... nenhum deles abrigava palavras com alento suficiente para amenizar a dor que ele sentia e não conseguia explicar. Uma espécie de raiva, misturada com tristeza, falta de coragem... Estava apático, inerte e sem respostas. Deitado ali, no chão do apartamento, sem força para trabalhar, atender o telefone e até mesmo chorar. Não reconhecia a si mesmo.

Havia uns meses que a amiga tinha percebido que estava diferente. Não se encontravam com tanta frequência. Parou de contar os casos do trabalho. Ele, antes tão sensível diante das coisas simples da vida, já não via prazer em fazê-las. Reclamava do país, da política, do filho que pouco ia vê-lo. Não queria viajar com a turma no fim de ano. Sentia falta da ex-mulher. Duas semanas antes, chegou a queixar-se do sono ruim e, posteriormente, de passar noites em claro. Tudo muito sutilmente, assim como a variação do seu humor.

Um dia, surtou. Resolveu não sair de casa. Não foi trabalhar, não deu satisfação ao sócio na firma, fechou as cortinas e fez do pequeno apartamento, alugado no centro, o seu mundo das horas seguintes. Nem ligou a TV. Faltava vontade de tudo, até de tomar banho. Não percebeu antes, mas aos cinquenta e poucos estava deprimido. Para alguns, os sinais não são tão claros, podem demorar um pouco para perceber e aceitar que foram acometidos pelo mal.

O homem não está sozinho. A humanidade está deprimida: uma onda de tristeza, pessimismo e baixa autoestima aparece com frequência. As sensações podem vir juntas ou separadas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, estima-se que cerca de 5% da população mundial sofra de depressão a cada ano. No Brasil, o índice chega a 10%. E olha que os dados são de 2014. Uma pesquisa mostrou que 73% das pessoas diagnosticadas com depressão falam que há preconceito contra a doença, principalmente no começo. Algumas tentam esconder.

Muita gente acha que é frescura, drama de quem tem medo de enfrentar os próprios problemas. Eu mesma já pensei assim de um ou de outro, confesso. Mas antes de julgar, é preciso ter informação. Os males da mente são assustadores. Há evidências de alterações químicas no cérebro do indivíduo deprimido. É preciso tratamento adequado, além de acolhimento, amor e amizade.

Foram as mãos da amiga de uma vida que abriram a cortina da sala daquele apartamento escuro após três dias melancólicos. A janela foi escancarada para deixar o ar entrar. A luz trouxe incômodo, mas também um pouco de coragem. Sozinho, o homem não conseguiria se reerguer. Não compreendia a si mesmo. Antes de ir até lá, a mulher ligou inúmeras vezes. O celular estava descarregado. Tentou falar com o filho e com a ex do amigo. Ninguém tinha notícias. Resolveu ir até o prédio. O porteiro deixou entrar o rosto conhecido e aflito. Tocou a campainha por quase 40 minutos. Ele hesitou em chegar até a porta, mas rendeu-se à voz da amiga que oferecia ajuda.

O fato completou um ano. Os dois lembraram-se da fase num encontro dia desses. Saem juntos toda semana. Falam de livros e filmes. Do amadurecimento. De coragem. Também caminham juntos. Ele parou de beber e já consegue dormir melhor. Almoça com o filho uma vez por semana. A ex, às vezes, também vai. Consegue contemplar as pequenas coisas da vida. Mais que isso, tenta se concentrar nelas. A amizade, ele celebra todos os dias, com extrema gratidão. 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!