RENATA NUNES

O lar que foi levado

Redação O Tempo


Publicado em 13 de novembro de 2015 | 03:00
 
 
 
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Estar em casa importa. Faz diferença. Aconchega. Acolhe. Conforta. Traz paz. O imóvel não precisa ser luxuoso, pode ser grande (ou não), antigo e com imperfeições. Não se trata apenas das cores, do tipo de piso, da fachada, dos móveis ou de eletrodomésticos. Antes disso estão as emoções vividas ali. As lembranças construídas naquele espaço, as relações estabelecidas, o amor vivido no interior do que chamamos de “lar”.

As paredes, conforme o que se pendura nelas, podem contar histórias. De um time campeão. De alguém que partiu. Da família querida. Dos amigos mais chegados. Do sorriso dos filhos. Casas são lugares de encontros... em cafés, almoços e jantares. Nas salas, sofás lembram abraços, e mesas remetem a convivência. O lugar abriga registros imensuráveis. Os lares podem ser a narrativa de toda uma vida.

As moradias da pequena Bento Rodrigues, no subdistrito de Mariana, representavam um enredo de 200 anos, cenário pacato e de religiosidade. Agora, a Bento dos antigos tropeiros que percorriam Minas é triste. É conjugada no pretérito a terra que, até a semana passada, era também presente. O futuro brincava pelas ruas, com os pés descalços e sem preocupação com nenhum tipo de violência.

O distrito foi violentado. A lama encobriu passado – construções, convivência e histórias. E foi ainda mais cruel: arrastou com ela até quem ainda ia crescer por lá pra encontrar um tal futuro, aquele que não existe mais. Os cavalos não mais vão dividir as ruas com os carros nem com os animais de estimação que circulavam livremente. Difícil seguir a trilha até as cachoeiras escondidas nas matas do entorno.

O seu João não mais estará mais na janela acenando ou dizendo “bom dia”. Na verdade, não sabe ao certo quando o dia será bom novamente. Faltarão cumprimentos no lugar onde todo mundo se conhecia e os amigos eram como parentes. No domingo não terá missa. E a comida caseira da Sandra, por ora, está sem sabor. A coxinha do restaurante não vai ser servida. Tampouco os saborosos pé de moleque e cocada. No momento, estão “sem doce”. Nada agora é como antes. Há vazios. Lacunas imensas sem qualquer perspectiva de serem preenchidas. Vínculos partidos. Dor em meio à lama.

A lama chegou pelas mãos do homem, daquele que se vestiu da ganância, que “esburacou” a natureza e pouco ligou para o outro homem... aquele que já estava ali e era o dono da terra... A água barrenta e com rejeitos arrastou vidas. Lares de Bento se foram e também os da pequena Paracatu de Baixo. Desceram rio abaixo, assim como tantas lembranças. Vão rumo ao mar. E o rio? Este também adoeceu, assim como seus moradores, peixes e outros animais. Agora, o rio padece. A água falta em comunidades rio afora. O homem terá sede num ciclo repleto de injustiças.

Será preciso refazer casas, se faz necessário reconstruir lares e laços. A esperança vai precisar renascer da fé. Provavelmente, vai conviver com a saudade – abstrata, insensata e, nesse caso, dolorida. Saudade de tudo que era bom, simples e real. E quem vai pagar o preço destas perdas? Todos querem saber, porque o que foi não volta mais... Acima da cidade tinha uma barragem. E agora, pelas bandas de lá, só tem mesmo a danada da tristeza... Choram homem e natureza.

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