Representatividade

Para além do brincar: onde estão as bonecas negras?

A pergunta de uma criança, que na época tinha em torno de 2 ou 3 anos, acendeu um alerta: era hora de ter uma conversa de gente grande com uma criaturinha bem pequena


Publicado em 19 de março de 2021 | 06:00
 
 
 
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“Mamãe, por que você é assim?”. A pergunta de uma criança, que na época tinha em torno de 2 ou 3 anos, acendeu um alerta: era hora de ter uma conversa de gente grande com uma criaturinha bem pequena. Com o tom calmo, perguntei: “Assim como, minha filha?”. Taís deu de ombros e respondeu: “Diferente”. Sim, ela começava a perceber que a mãe dela – no caso, eu – não era representada com frequência no mundo em que ela começava a conhecer: o dos contos de fadas e das bonecas.  

Não, aquela pergunta não revelava preconceito da minha pequena, mas sim uma curiosidade infantil. Crianças nascem como folhas em branco, onde escrevemos os primeiros conhecimentos e concepções sobre o mundo. Ninguém nasce preconceituoso. Isso é algo que se aprende. Sabendo disso, tive muito cuidado com cada palavra da minha resposta. Claro que, passados cerca de três anos, eu não recordo com exatidão o que eu disse. Mas sei que expliquei a ela que todos somos diferentes e cada um tem um tipo de beleza. Exemplifiquei com tios e primos, que são completamente diferentes entre si.  

Por mais que, naquele momento, ela tivesse ficado satisfeita com a resposta, eu sabia que esse assunto não poderia morrer ali. Eu tinha que trabalhar a diversidade com ela para além do tradicional: “Olha, a mamãe é negra, a tia Keley é loira, o cabelo da vovó é castanho como o seu, e você ama a todas nós”. Olhei para os brinquedos ao meu redor e pude contar nos dedos as bonecas negras, obesas, com cabelos diferentes que tínhamos em casa. A maioria seguia um “padrão”, no qual eu não me encaixo. 

Passei a buscar por essas bonecas em diferentes lojas e tive uma constatação desconcertante: o problema não era as prateleiras da minha casa serem pouco diversas, era as das lojas serem. Foi isso também que concluiu a organização Avante – Educação e Mobilização Social, no contexto da campanha “Cadê nossa boneca?”. Em 2020, só 6% das bonecas fabricadas pelas principais marcas eram negras. Cenário ainda pior do que o registrado em 2018, quando eram 7%. O levantamento foi feito nos sites das empresas associadas à Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq).  

Se levarmos em conta que mais da metade da população brasileira é negra, nossos brinquedos estão representando uma sociedade que não é a nossa e causando confusões na cabecinha das crianças, como aconteceu com a minha filha, que não me viu representada no mundo do brincar. Já parou para pensar em quantas crianças negras não têm seus traços representados nas bonecas e precisam lidar com uma baixa autoestima em função disso? E quantas delas, mais tarde, se tornam adultos inseguros e com sentimento de inferioridade por causa disso? “Ah, mas é só uma boneca”, podem dizer alguns. “Quanto mimimi”, vão dizer outros.   

Seria pouco importante mesmo se a explicação para a falta de diversidade nos brinquedos não fosse fruto de algo exaustivamente dito nesta coluna: infelizmente o corpo negro não é visto como belo dentro do padrão criado em uma sociedade preconceituosa como a nossa. Até aí, acho que está claro. Mas o que eu quero te perguntar hoje é: essa visão excludente é a que você quer passar para os seus filhos? Porque não é o que eu quero ensinar para a minha filha, que hoje tem uma coleção diversa de bonecas e assiste aos desenhos dos poucos heróis e princesas tidos como “fora do padrão”. Ela vê beleza em vários perfis de pessoas e, mais do que isso, sabe respeitar o próximo. E os seus filhos, sobrinhos e afilhados? Eles têm sido educados para amar ou para odiar o outro? Dependendo da sua resposta, ainda está em tempo de mudar. E boa sorte para encontrar bonecas diversas no nosso mercado. Você vai precisar.

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