ROBERTO ANDRÉS

Nadar e pescar no Arrudas

Redação O Tempo


Publicado em 04 de agosto de 2016 | 04:00
 
 
 
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“Eis um retrato das cidades no Brasil: o desenvolvimento econômico da última década aumentou o ritmo de obras públicas, o que ocorre ao sabor das vontades políticas mais variadas, sem um debate efetivo com a sociedade, e quase sempre baseado em uma idéia de progresso anacrônica e violenta.

Nesse contexto está a cobertura dos rios para construção de vias de tráfego. Privilegia-se o automóvel, e o pato é pago pelas casas, árvores, rios, passeios e jardins, que cedem lugar à duplicação de avenidas. O espaço público é tomado cada vez menos como lugar de pessoas, e cada vez mais como suporte alargável de carros que se proliferam no ritmo IPI zero.

Modelos alternativos - elaborados, aplicados e avaliados - estão por aí, basta olhar pela janela. Podem ser encontrados tanto na vizinha Bogotá, quanto em Paris ou Seul. Lugares onde o espaço público é abordado no seu potencial agregador, propiciador de experiências citadinas enriquecedoras - tendo como fundo o investimento sério em transporte coletivo.

Mas e se Paris, esta cidade tão tomada como ponto irradiador de tendências, adotasse o nosso modelo urbanístico? Derrubariam edifícios históricos, alargariam ruas do Marais, construiriam prédios burocráticos na floresta de Vincennes, cobririam o Sena com pistas de tráfego - dando a tudo o nome um tanto cínico de revitalização?”

Com estas palavras, em meados de 2009, eu apresentava à revista Piauí a proposta de publicar uma série de montagens fotográficas em que rios urbanos eram cobertos por asfalto. Belo Horizonte vinha de inaugurar a primeira fase do Boulevar Arrudas, nome cínico para se cobrir o rio com pistas para carros.

Alguns meses depois, as imagens foram publicadas junto a um texto irônico, que deixava dúvida sobre a veracidade da situação. Havia um tom ufanista: finalmente, nossas soluções urbanas estão sendo copiadas. Houve quem achasse que era verdade, mas o objetivo era despertar para o quão absurdo era o apagamento do ribeirão em BH.

Afinal, gestores públicos destroem as cidades brasileiras, mas vão em férias para a bucólica Paris, com passeios à beira do Sena. Não pensam que o Sena já foi um rio sujo e degradado, e que políticas públicas fizeram dele uma referência paisagística.

Infelizmente, em sete anos nada mudou na gestão pública por aqui. O Boulevar Arrudas, a primeira parceria de Fernando Pimentel e Aécio Neves, continua priorizado na gestão de Márcio Lacerda – outro fruto do casamento tucano-petista. A cada dia, um novo pedaço de asfalto cobre o ribeirão, cuja riqueza da bacia foi um dos motivos para a escolha do local onde foi implantada a capital mineira.

Todos os anos, faço com alunos da UFMG uma expedição ao Arrudas. Com os pés sobre um bueiro de concreto que emana cheiro de esgoto, no meio do trânsito violento, conversamos sobre rios, mobilidade, meio ambiente. Certa vez, ao ver um caminhão pipa irrigando aquele jardim natimorto sob o qual jaz um rio, enxergamos naquela imagem a síntese da nossa estupidez na gestão urbana.

As cidades de referência hoje buscam limpar seus rios, reduzir pistas de carros, criar espaços públicos. Em Seul, a recuperação do rio Cheonggyecheon, que havia sido coberto em 1967, se iniciou em 2003 – antes mesmo do início da cobertura do Arrudas.

Seul

Gráfico da velocidade média em Seul. A obra de retirada de pistas e abertura do Rio Cheonggyecheon aconteceu entre 2003 e 2005. O trânsito não piorou. Crédito: Projeto Manuelzão.

Um elevado, pelo qual passavam 1,5 milhão de veículos por dia, foi demolido para dar lugar a um parque linear de 9,4 km ao longo do rio. Os resultados foram a melhoria do trânsito e da qualidade do ar, redução de temperatura e um novo espaço de lazer e cultura, a céu aberto.

Toda a obra custou U$ 280 milhões, o que é uma pechincha perto do que se gasta no Brasil. Somente de 2010 a 2013, Belo Horizonte gastou mais de R$1,3 bilhão de reais em alargamentos de pistas e viadutos. As construtoras amigas do poder agradecem, mas as obras não melhoram o trânsito e a cidade vai ficando horrível.

Olhar para essa carta de 2009 me fez pensar como o atraso se mantém. A sociedade já deu passos adiante, e hoje crescem as demandas por rios limpos, parques, cidades humanas e saudáveis. Mas a maioria dos políticos continua chafurdada no mundo cinza do asfalto e do concreto superfaturados. Que candidata ou candidato vai propor demolir o Boulevar Arrudas nessas eleições?

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