ROBERTO ANDRÉS

Terra comum

Redação O Tempo


Publicado em 17 de maio de 2018 | 03:00
 
 
 
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Deixemos livre a imaginação. Pensemos em um regime de uso de objetos e recursos em que ninguém é proprietário e a coletividade pode usufruir dos bens. Parece coisa do futuro, mas é do passado: a maior parte da história da espécie humana teve um modo de organização baseado no uso comum – terras, objetos e recursos naturais faziam parte de uma dinâmica que prioriza o uso e não a propriedade.

É o que argumenta o professor de direito da UFMG, Andityas Soares, que na próxima semana participará do seminário Terra Comum, no BDMG Cultural. O encontro reunirá ativistas e pesquisadores de diversos lugares do planeta que trabalham com outros modos de propriedade e gestão da terra.

Esse é um tema central na sociedade brasileira, visto que seguimos a ser um país de grande desigualdade fundiária, nas áreas rurais ou urbanas. Aliás, desde as caravelas, passando pelas capitanias hereditárias e pela Lei das Terras, o que houve por aqui foi expropriação de terras que eram de uso coletivo. Tudo com grande concentração nas mãos de poucos.

Isso tem ainda um grande impacto nas cidades. Conforme apontei recentemente, o Brasil tem mais imóveis vazios do que famílias sem teto, apesar da nossa legislação exigir a função social da propriedade e prever instrumentos legais para redistribuição imobiliária.

As pessoas mais pobres foram sendo jogadas para as periferias, seja através das ocupações de áreas vazias, seja por programas estatais equivocados. O resultado é uma segregação espacial que, além de violenta, é ineficiente: aumentam-se as necessidades de deslocamento, as horas no trânsito, a poluição, os acidentes.

As boas práticas internacionais recomendam a diversificação social e a reocupação dos centros com programas de moradias populares. Quem trabalha na região central não deveria morar nas bordas e vice-versa. Essa política vem sendo executada mundo afora com instrumentos diversos. Em Paris, cada novo empreendimento na região central precisa contar com um percentual de habitações de interessse social.

Em Belo Horizonte, os bons exemplos não vêm das políticas públicas, mas dos movimentos sociais. Duas ocupações recentes de edifícios que estavam abandonados permitiram que centenas de famílias sem casa passassem a ter onde morar, perto das oportunidades de trabalho e serviços.

Estas são as ocupações Carolina Maria de Jesus, no bairro Funcionários, e a Vicentão, na região central. Com a ajuda de movimentos de luta pela moradia, pessoas sem alternativas puderam transformar imóveis abandonados, muitas vezes em estado de deterioração e com dívidas enormes de IPTU, em espaços habitáveis.

A região central de Belo Horizonte tem dezenas de imóveis abandonados, com o potencial de abrigar o dobro de moradores que tem hoje sem construir nenhuma casa. Um estudo realizado pela arquiteta Luiza Greco detalha esses dados, mostrando que há um acréscimo potencial de 25.000 pessoas nos imóveis vazios do centro.

Seria papel do Estado atuar para que esses imóveis fossem transformados em belos projetos habitacionais, construídos em parceria com os movimentos sociais e os futuros moradores. No entanto, o Estado tem atuado, desde sempre, para garantir a propriedade, se esquecendo do uso, da função social e de seu papel de prover direitos. As duas ocupações aqui citadas, exemplares por apontarem para as políticas públicas necessárias, estão ameaçadas de despejo.

Conforme pergunta Isabella Gonçalves, das Brigadas Populares, “se as famílias da ocupação Vicentão forem jogadas nas ruas, a quem este imóvel será reintegrado? À família de Tasso Assunção que ergueu sua riqueza por meio do roubo do povo brasileiro e que hoje deve milhões ao Município, ao Estado e à União?”

Ou como lembra Joviano Mayer, em entrevista publicada no site do seminário Terra Comum, “se você se disfaz de um bem móvel, em situação de abandono, joga no lixo e alguém se apropria desse bem, não há aí nenhum crime. O mesmo deveria valer para a propriedade fundiária.”

Propriedade sem uso é violência e exclusão. Desnaturalizar essa irracionalidade dos nossos tempos é fundamental. O encontro Terra Comum está aí para isso, bem como as ocupações urbanas que fazem valer a constituição do país.

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