SANDRA STARLING

A crueldade dos coletores da 'palhota'

Marielle presente onde houver alguém disposto a esse desafio


Publicado em 21 de março de 2018 | 03:00
 
 
 
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Estava lendo “Terra Sonâmbula”, de Mia Couto, esse genial escritor moçambicano, quando fui surpreendida pela notícia das mortes de Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes. Mergulhada como estava nas histórias dos povos do sudeste da África, concluí, de bate-pronto, que Marielle tombou porque ousou enfrentar os coletores da “palhota”, esses “sobas”, ou “régulos”, no dizer do português colonial, que se assenhorearam dos morros e periferias de nossas metrópoles. Mas o que vem a ser essa tal de “palhota” e o que a morte de Marielle Franco teria a ver com isso? Explico.

A então recém-unificada Alemanha, após a vitória na Guerra Franco-Prussiana (1871), exigiu das potências europeias uma nova divisão das colônias africanas, o que ficou acertado na Conferência de Berlim, em 1885. Entre os territórios reconhecidos como colônias portuguesas estava o de Moçambique. Ocorre que os portugueses não dispunham de recursos para administrar tão vasto território. Foram criadas, então, com capitais ingleses, franceses e alemães, as chamadas “companhias majésticas” ou “soberanas”, com total autonomia administrativa e financeira. Portavam até os direitos de emitir moedas e de organizar forças militares. Eram um “Estado” dentro do Estado. Em 1887, Portugal autorizou a essas companhias a cobrança de um imposto de habitação conhecido como “palhota”, em referência aos miseráveis barracos das populações locais. Os “contribuintes” deveriam pagá-lo com moeda ou gêneros alimentícios. Se não os possuíssem, deveriam prestar serviços obrigatoriamente. Desnecessário dizer que isso se transformou em trabalho análogo ao de escravo, odiosa prática que durou, em Moçambique, até 1961.

Pois bem. O Estado brasileiro permitiu que companhias majésticas se instalassem onde vivem os mais pobres, notadamente no Rio de Janeiro. Milícias formadas por policiais ou ex-policiais e facções de traficantes de drogas disputam áreas de influência onde o Estado, simplesmente, não existe, como já se alertava por ocasião da inauguração da primeira UPP, no morro de Santa Marta, em 2008. Sendo assim, essas companhias majésticas fluminenses se arvoraram no direito de cobrar das populações que subjugam as mais variadas formas de “palhotas”: taxas adicionais por entrega de gás, correio, luz, água, TV a cabo, serviços de mototáxi e por aí vai. Sofrem esse ônus populações que, infelizmente, não fazem a menor ideia do que seja Estado democrático de direito, pois isso não faz parte de suas vidas.

Marielle Franco não se furtava ao auxílio de quem quer que fosse, quando se tratava da garantia de direitos fundamentais da pessoa humana. Até mesmo famílias de policiais vitimados pela violência eram amparadas por essa batalhadora: mulher, negra e favelada. Foi assassinada porque, como lembrou o deputado federal Chico Alencar, enfrentava “as pequenas e as grandes máfias”. Marielle Franco estará sempre presente onde houver alguém disposto a desafiar os cobradores de “palhota” que infestam nosso triste Brasil.

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