SANDRA STARLING

As admiráveis novas gramáticas do STF

Enquanto seu lobo não vem, voltemos ao tema da terceirização


Publicado em 24 de outubro de 2018 | 02:00
 
 
 
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A tentação de abordar temas da conjuntura eleitoral é grande. O desfecho se aproxima, e as questões em aberto são inúmeras. Mas haverá oportunidade de tratar de assuntos controvertidos, salvo a hipótese de mergulharmos em tempos de trevas, de tal sorte obscurantistas, que não restaria espaço sequer para a liberdade de expressão. Pelo andar da carruagem, hoje, nenhum país está imune a desvarios autoritários. Inclusive o nosso.

Mas, enquanto seu lobo não vem, voltemos ao tema da terceirização, uma das fontes do desespero que assola o país. Ao ratificar, há duas semanas, seu entendimento sobre tema tão sensível, o STF deixou sua contribuição para nosso maior esgarçamento social. Analisei os votos dos magistrados, emitidos durante o primeiro julgamento dessa controvérsia, e pude, assim, pinçar algumas pérolas.

O voto do decano, ministro Celso de Mello, parecia uma ode ao Código Civil Napoleônico, de 1804, com ampla exaltação da liberdade de contratar! Certamente, passou-lhe despercebida a Lei de Chapelier, que, desde 1791, punia, na França, com a pena de morte, a associação de trabalhadores e a greve. O ilustrado Luiz Fux exaltava o contratualismo como fonte do dinamismo econômico. Poderia, antes, ter lido algo interessante sobre a livre vontade no contrato de trabalho, no último parágrafo do capítulo IV do tomo I de “O Capital”, um livro – escrito por um judeu barbudo – do qual muito se fala e pouco se consulta. Já a então presidente Cármen Lúcia, ao votar, parecia repetir o mantra do professor José Pastore: um emprego qualquer é melhor que o desemprego. Melhor trabalhar por ninharia do que não trabalhar... Ainda chegaremos ao ponto de a Justiça elogiar a servidão a pão e água, capaz de amenizar a fome e a sede de quem vive do trabalho. Reconheça-se: implícita, no argumento da ministra, a admissão do desengano quanto às possibilidades emancipatórias do capitalismo. Só faltou a famosa citação de Margareth Thatcher: “Não há alternativa”.

Mas ninguém excedeu o ministro Luís Roberto Barroso no elogio da “gig economy”, ou seja, essa formalização do “bico” com redução da renda do trabalhador e aumento de suas dívidas. Intelectual orgânico lapidado em Yale, o ministro apelou a “novas gramáticas”. Disse que as relações de trabalho passam por transformações extensas e profundas em todos os países de economia aberta e que a estrutura de produção vem sendo flexibilizada em todo o mundo. Ele sustentou que, mais que uma forma de reduzir custos, o modelo mais flexível seria uma estratégia essencial para a competitividade das empresas.

Competitividade? Suas palavras provocariam gargalhadas em Jeff Bezos, o famoso magnata da Amazon, que, por coincidência, é proprietário da maior empresa de intermediação de mão de obra do mundo: a Mechanical Turk. Convém assinalar que já se prevê que, por volta de 2042, Bezos terá concentrado tanta, mas tanta riqueza, que se tornará, em dólares, o primeiro trilionário sobre a superfície da Terra. Eis aí o admirável mundo das “novas gramáticas” do ministro Barroso!

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