SANDRA STARLING

As caravanas do Arará, Caxangá e outras

Objetivo é tornar punível o aborto resultante de estupro


Publicado em 19 de dezembro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Nos arquivos das duas Casas do Congresso Nacional há proposições que têm tratado de muitas ideias desvairadas e que não prosperaram. Algumas foram explicitamente rejeitadas, outras nem sequer tramitaram. Quiçá surtos psicóticos de seus autores, entre elas há, por exemplo, um projeto de resolução do Senado Federal – que legislava sobre o Distrito Federal antes da Constituição de 1988 – dispondo sobre a proibição de venda de salgados recheados com azeitonas na rodoviária de Brasília “para evitar que os caroços, cuspidos pelo consumidor, travem as escadas rolantes”.

Mas há também muitas propostas absolutamente procedentes que dormitam nos escaninhos, às vezes por muitos anos, esperando um congressista que a aproveite, na busca de uma boa ideia a ser implementada. Basta, então, ser pedido o desarquivamento para reapresentação.

Infelizmente, a futura ministra da Mulher, da Família e Direitos Humanos, indicada por Jair Bolsonaro, pretende desarquivar um desses entulhos que não merecem, em hipótese alguma, ser transformados em lei.

Refiro-me a um projeto de lei que dispõe sobre a criação de albergues ou orfanatos destinados a crianças nascidas de gravidezes resultantes de estupros e rejeitadas pelas genitoras. Tais pessoas, além de abrigo, fariam jus a um salário mínimo para arcar com os custos de sua sobrevivência. Desnecessário dizer que o objetivo remoto da iniciativa é tornar punível o aborto resultante de estupro. A civilização ocidental rejeita a punibilidade da interrupção da gravidez nessa circunstância desde os relatos de violações de mulheres ocorridos durante a Primeira Guerra Mundial.

Não consigo imaginar a dor que incidiria sobre a vida de pessoas que viessem ao mundo como frutos de estupros e que teriam de carregar pela vida afora essa condição etiquetada na testa. Isso seria abjeta ofensa ao fundamento da dignidade da pessoa humana, inscrito no primeiro artigo de nossa Constituição.

Creio que quem, recentemente, bem soube expressar as consequências, para todos nós, de gravidezes violentas e indesejáveis foi Chico Buarque em sua impactante canção intitulada “As Caravanas”. Quantos, dentre esses “estranhos/ suburbanos, tipo muçulmanos do Jacarezinho,/ a caminho do Jardim de Alá”, que, como dizem os versos, “deixam em polvorosa/ a gente ordeira e virtuosa que apela/ pra polícia despachar de volta/ o populacho pra favela,/ ou pra Benguela, ou pra Guiné”, não seriam frutos de estupros?

Paridos que foram pelo respeito a ser devotado ao nascituro, em qualquer circunstância, os frutos da vil penetração que engrossam charangas, comboios e caravanas, quando pintam em Copacabana, fazem com que os “humanos direitos”, como quer o general Augusto Heleno, engrossem a gritaria, filha do medo, e, tomados pela raiva, que é mãe da covardia, peçam em ordem unida: “Tem de bater, tem de matar”. A culpa não é do estupro. “A culpa deve ser do sol que bate na moleira./ O sol que estoura as veias./ O suor que embaça os olhos e a razão”.

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