Não é que Deus fosse preguiçoso, longe de mim tal heresia. Apenas, vivendo sozinho, não havia quem o assessorasse. Onisciente, onipotente, onipresente, fez o mundo na maior rapidez, sem pensar nas consequências. Tivesse algum conselheiro...
CONSELHOS
Diria Cláudio Ptolomeu, caso existisse:
– Não seria melhor, Senhor, fixar essas bolinhas em círculos, tanto as faiscantes quanto as foscas, bem grudadas na abóbada celeste? Do jeito que estão periga caírem.
Maturaria Isaac Newton, fosse nascido:
– Quem sabe, Senhor, maçãs maiores? É duro testar a teoria gravitacional com frutas quase sem peso. Até Guilherme Tell, indivíduo que não passa de lenda...
Refletiria Albert Einstein, estivesse presente:
– Não poderia ser a luz mais veloz, Senhor? Do jeito que se move, lerda que nem cágado, não dá pra formular a equação da teleportação.
Questionaria George Gamow, em sendo vivente:
– E a radiação de fundo residual do Universo, Senhor? Como será explicada?
EXPLICANDO
Por causa da pressa é que houve tanta confusão no princípio, no meio e no fim da Criação. Quaquilhões de anos-luz pela frente, e os astros ali amontoados numa cabeça de alfinete, antes do quaquilionésimo de segundo primordial.
Argumentou Deus:
– Antes da Criação, havia o Caos, nada além. Se deixei as coisas emboladas no primeiro dia foi para permitir o livre-arbítrio dos corpos celestes, decidindo eles próprios como agir e para onde ir. Nada mais justo e mais condizente com a sabedoria divina.
RAZÃO KANTIANA
Um tanto desconcertado e tímido em demasia, o filósofo Immanuel Kant, vivente de tempos mui, mui, mui futuros, cocou a barbicha (que não tinha) e estranhou:
– Livre-arbítrio em minerais, Senhor? Até onde saberei, no futuro pra lá de longínquo, tal atributo é exclusivo dos humanos, e só deles. Não imagino estrelas pensando.
COLANDO ESTRELAS
– O que não tem remédio remediado está – pontificou Ptolomeu. – Parece-me, contudo, mais conveniente serem os corpúsculos pregados na abóboda celeste com algum material resistente. Digamos, num esboço tosco, a Terra no centro, com Sol, estrelas e demais corpos circulando em volta dela. Já que tudo está sendo criado na Terra...
DESFAZENDO O CAOS
Estava nesse ponto o Universo, prontinho para começar, mas Deus ficou preocupado com toda aquela lenga-lenga. Além disso, Adão, Eva e a cobra estavam parados ali ao lado, esperando para continuar sua participação no teatro da Criação. Nem ao menos se atreveram a morder uma das bonitas maçãs, como estabelecia o celestial enredo.
“De fato”, ponderou Ele, “tem razão o chato do Kant. Talvez seja melhor criar alguma alternativa, já que amanhã tenho mais o que fazer”.
– Eureka! – exclamou, usando a expressão que bilhões de anos depois os gregos imortalizariam. – Criarei o espaço-tempo e, de lambujem, o Big Bang!
E foi o que fez.
REINVENTANDO O CAOS
Assim as coisas entrariam nos eixos e a história poderia (mas ainda não pode) continuar. Pelos seguintes acontecimentos futuros.
Reunidos em Atenas, os filósofos protestaram, argumentando que Deus valorizava excessivamente as teorias de Ptolomeu, deixando dezenas de outras no Limbo.
Reunidos em Londres, físicos de toda a Europa redigiram um abaixo-assinado, exigindo de Deus sua (deles) participação direta no desenvolvimento do mundo.
Reunidos em Berlim, centenas de biólogos questionaram a preeminência dos físicos em questões relativas à Criação, saindo em passeata pelas ruas.
Reunidos em Nova York, milhões de criacionistas demonizaram o Big Bang, para eles invenção do diabo (que ainda não existia). Ameaçaram, inclusive, suicídio coletivo.
ADÃO, EVA, COBRA
Ali ao lado de Deus, como já referido, nossos personagens principais estavam de boca aberta diante do caos que sucedera ao Caos.
– Sim, senhora –, disse a cobra dirigindo-se a Eva. Sei que no futuro remotíssimo nós, as fêmeas, seremos conhecidas como linguarudas e boquirrotas. Mas veja você! Só por causa de detalhes insignificantes, tipo estrelas suspensas, tamanho da maçã e velocidade da luz, vêm uns caras meter o nariz na Criação. E olha que nem existem ainda!
Ao que Adão respondeu, adiantando-se a Eva, sempre um pouco lerda:
– Concordo. E até proponho uma carta aberta exigindo que nossa participação na criação seja mais valorizada. Como está não pode ficar.
NÃO PODE FICAR
De fato, era caroço demais no angu da criação. Inúmeros indivíduos, sequer existentes, baixavam do futuro – que nem existia ainda, repito – para declamar palpites infelizes.
Então, quem se irritou de verdade foi Deus. Com Sua clarividência, que se juntava à Sua onipotência, apertou o gatilho, quero dizer, acendeu o rastilho de pólvora, que velozmente se aproximou da cabeça de alfinete que concentrava toda a matéria do Universo.
Quando aquilo explodiu, voou espaço-tempo para tudo quanto é lado. Quer dizer, voaram largura, altura e profundidade. O tempo, como sabemos, é mera consequência. Adão, Eva e a cobra, de saco cheio, foram dormir, já que o futuro a Deus pertence.