Vittorio Medioli

Vittorio Medioli

Empresário e político de origem italiana e naturalizado brasileiro, Vittorio Medioli está em seu segundo mandato como Prefeito de Betim. É presidente do Grupo SADA, conglomerado que possui mais de 30 empresas que atuam em diversos segmentos da economia, como logística, indústria, comércio, geração de energia e biocombustíveis, além de silvicultura, esporte e terceiro setor. É graduado em Direito e Filosofia pela Universidade de Milão. Em sua coluna aborda temas diversos como economia, política, meio ambiente, filosofia e assuntos gerais.

O TEMPO

Argos, o frio e a solidão

Também, sempre que possível, podemos amparar os “Argos esquecidos nas ruas, nem que seja com uma caixa de papelão para abrigo

Por Vittorio Medioli
Publicado em 04 de julho de 2021 | 03:00
 
 
 
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O astuto e sábio Ulisses, depois de 20 anos consumidos na Guerra de Troia e numa longa odisseia, que passou por cantos de sereias, monstros marinhos, pela maga Circe, pelo ciclope e por inúmeras tempestades, chegou finalmente à ilha de Ítaca.

Com toda a prudência se apresentou em trapos de mendigo ao se aproximar do palácio da esposa, Penélope, assediada por aguerridos pretendentes da rainha “viúva”, já que o marido se encontrava desaparecido depois de duas décadas de ausência e de silêncio.

Ulisses, vivo como nunca, consegue se esquivar das traições e insídias, engana a todos, mesmo os seus servos e velhos amigos, que o trocam por um miserável esfomeado. Ninguém consegue imaginar que debaixo dos trapos macilentos se escondia o ainda vivo rei da ilha, ou responsável pela derrota de Troia.

Recebe até insultos e humilhações nas ruas, sem revidar.

Mas, se os homens não se apercebem do rei, um velho e decrépito cão de caça, que Ulisses criou antes de partir para a guerra, o fareja, o reconhece, abana com as últimas forças o rabo, baixa as orelhas e arregala os olhos. O fiel Argo arranca uma lágrima do herói, que enxuga rapidamente para não despertar atenção.

A longa espera de Argos se finda e com ela também a vida, que resistiu aos maus-tratos, à infestação de carrapatos, ao descaso e ao dormir numa cama de esterco de gado enquanto a lembrança continuava acessa.

Vinte anos sem esquecer o passo, o cheiro, a identidade de quem lhe fez bem e lhe deu a melhor alegria. Não consegue levantar o corpo, a cabeça recua, os olhos espelham a satisfação com a visão do dono. Mergulha feliz na morte libertadora.

Na longa saga de Ulisses, apenas a devoção e o amor de Argos o levam à comoção. No capítulo XVII, na linha 290 da “Odisseia”, tem-se o testemunho deixado por Homero da relação do homem e do cão como ele a enxergava, sublime, atemporal, incontaminada, silenciosa.

Argo durou excepcionalmente por mais de 20 anos, apesar das tribulações, resistiu a tudo e a todos para rever o amado mestre. Extingue-se assim sem dor, sem rumores depois de um último sopro de incontável alegria.

Mesmo no momento da morte, os olhos de Argo não perdem a ternura, na verdade se iluminam com a presença do nunca esquecido, do melhor de todos, do amigo que povoou seus sonhos e alimentou sua saudade.

Nesse episódio, não é Ulisses um mendigo nem Argos um cão velho e sofrido; nos dois serenamente brilha a pureza da amizade, e recuperam um para o outro sua verdadeira identidade, do amigo amoroso e do fiel companheiro.

No momento de olhares que se cruzam, consagra-se uma ligação sem interesses, o milagre do amor incondicional resistente a qualquer distância e obstáculo: Ulisses deixa de ser um mendigo que proclama ser, Argo não é o cão assustador e fedorento, explode sem ruídos o mais terno sentimento, extingue-se a espera, chega o prêmio à persistência do esforço de viver para rever quem mais felicidade soube lhe dispensar.

Voltou-me essa passagem de Homero à memória no frio destes dias, no gelo destas noites, pensando nos seres humanos que não têm como se aquecer e alimentar e que podemos ajudar.

Também, sempre que possível, podemos amparar os “Argos” esquecidos nas ruas, nem que seja com uma caixa de papelão para abrigo, alguns trapos velhos e jornais, que podem preservar suas vidas, até que um “Ulisses” possa aparecer.

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