ARTES CÊNICAS

Iniciativa digna de aplausos

Artistas negros se unem no projeto Segunda Preta, a iniciativa pretende dar vazão a espetáculos e experiências cênicas dos mesmos

Por Patrícia Cassese
Publicado em 28 de janeiro de 2017 | 03:00
 
 
 
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A casa cheia, logo na estreia, foi o termômetro mais do que esperado. O projeto Segunda Preta adentrou a agenda cultural da cidade prometendo se firmar como iniciativa voltada a dar vazão a espetáculos e experimentos cênicos de artistas negros residentes na capital. 
 
Livremente inspirada no projeto “Terça Preta”, do Bando de Teatro Olodum, de Salvador, a iniciativa, que ocupa o Teatro Espanca! toda segunda até 20 de fevereiro, reverbera um desejo coletivo, lembra o ator Alexandre de Sena – motivo pelo qual ele prefere não creditá-la a um só indivíduo. De toda forma, sendo um dos nomes à frente do projeto, ele confirma que a reverberação começou a ser percebida antes mesmo da estreia. 
 
“Existem poucos espaços para apresentação e fruição do público negro, ainda há uma defasagem significativa em relação à realidade brasileira apontada pelas estatísticas”, constata, referindo-se a dados como o divulgado pelo IBGE em 2014, no qual entrevistas feitas em 2013 apontaram que 53% dos brasileiros se declaravam pardos ou negros. 
 
Alexandre também explica porque a escolha para o dia das apresentações recaiu sobre uma segunda. “É o dia de Exu, orixá que abre os caminhos”, lembra, acrescentando que, em iorubá, a palavra “exu” significa esfera, remetendo à ideia de algo que não tem começo nem fim, seguindo em fluxo contínuo.
 
Não bastasse, o palco escolhido para esta primeira temporada foi pensado para contemplar a população que transita pelo chamado Baixo Centro. Como muitas pessoas acorrem ao local para embarcar nos ônibus que as levarão de volta à casa após o trabalho, a proximidade do espaço atuaria como um chamariz, abarcando também os que ainda se sentem intimidados a frequentar espaços culturais.
 
“Eu mesmo demorei muito a entrar em espaços como o Palácio das Artes. Achava que não era para mim, que não me pertencia. Ainda são muitas, as pessoas que não têm acesso ao teatro na capital mineira, mesmo considerando que as sessões têm ingressos, eu diria, até acessíveis, se comparamos, por exemplo, aos do cinema”. Pelo mesmo motivo, os bilhetes para as atrações do Segunda Preta terão o preço da meia-entrada para quem reside fora dos limites da avenida do Contorno. Independentemente, o preço é bastante atrativo considerando-se ao que o público terá acesso: a inteira custa R$ 10. 
 
Para se ter uma ideia, a primeira edição abarca nomes consagrados da cena mineira, como Adyr Assumpção, Gil Amâncio ou o próprio Alexandre de Sena, bem como talentos que têm sido cada vez mais aplaudidos. A atração desta segunda (30) é “Mãe da Rua”, da Cia. Espaço Preto, que, por meio de um jogo cênico, aborda a realidade de muitos jovens negros – e de suas genitoras.
 
Com homenagem
 
Até o dia 20 de fevereiro, o Segunda Preta terá apresentado quatro espetáculos teatrais, três cenas curtas e um experimento multimídia. Cumpre frisar que essa primeira edição homenageia a veterana atriz Ruth de Souza, 95. Com a palavra, mais uma vez, Alexandre: “A proposta é sempre termos um homenageado vivo, que represente a luta negra, e ela é, indiscutivelmente, uma grande atriz. Desempenhou papéis importantes (no cinema, TV), embora outros lhe tenham sido negados pelo fato de ser negra. Não bastasse, a gente percebe que muitos artistas negros, ficando mais velhos, acabam não conseguindo mais trabalho”, lamenta.
 
Nascida no Rio de Janeiro, Ruth de Souza chegou a morar em Minas Gerais, mas foi mesmo em sua cidade de origem que deu início a uma  trajetória artística permeada por marcos como o de ter sido a primeira atriz negra a subir ao palco do Teatro Municipal do Rio. Também é creditado a ela o feito de ser a primeira negra a protagonizar uma novela - embora muitos creditem essa baliza a Thaís Araújo, Ruth de Souza protagonizou "A Cabana do Pai Tomás", em 1969.
 
E se ainda não fossem todos os motivos listados suficientes para louvar a iniciativa, o ator e diretor cita ainda o fato de a cidade abrigar poucos projetos dedicados aos artistas negros. “A gente faz escrita, discute leis de fomento com recorte étnico-raciais... Porém, a meu ver, a produção ficava restrita aos recortes Festival de Arte Negra (FAN) e Mostra Benjamim de Oliveira. Mas a gente existe ano todo”, pondera.
 
Incentivado a falar sobre um episódio recente ocorrido dentro da Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, quando atores se levantaram da plateia no teatro Raul Belém Machado para ler um documento condenando a prática da blackface (quando atores brancos se pintam para interpretar personagens que são concebidos como negros), que se desenrolava no palco, em uma peça de humor, Alexandre não se furta a dar sua opinião. "Infelizmente, ainda existe uma ignorância grande. Algumas pessoas deveriam fazer uma pesquisa e entender que isso vem sendo discutido pelo menos desde 1965, quando Laurence Olivier usou o recurso em 'Othello'  e  gerou toda uma discussão. Pessoas que acreditam estar fazendo uma homenagem (um dos atores alegou que a ideia vinha do desejo de homenagear a mulher que ajudou a criá-lo) precisam escutar a população negra. Depois que houve a manifestação no espetáculo, manifestação essa que fez um chamado ao diálogo, entrei na página do Facebook do espetáculo e vi que as fotos haviam sido retiradas. De todo jeito, vale lembrar sempre que a gente é parte integrante de uma estrutura social machista e racista, na qual poucos são privilegiados, e na qual o preconceito é perpetuado mesmo sem que as pessoas se deem conta. Já passou da hora de aceitar que o Brasil é um país racista"
 
 
 
 
Segunda Preta
Teatro Espanca! (Rua Aarão Reis, 542, centro). Às segundas, até 20/2, às 20h R$ 10 e R$ 5 (para quem residir fora dos limites da avenida do Contorno) 
 

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