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Precisamos falar sobre feminicídio

Movimento em defesa das mulheres que marcou os anos 80 ressurge no bojo do número assustador de casos de feminicídios registrados no país

Por Patrícia Cassese
Publicado em 03 de novembro de 2018 | 03:00
 
 
 
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A grafia correta do nome da vítima, Mirian Chrystus pede à reportagem o cuidado de certificar. Mas a expressão de pânico estampada no rosto da advogada Tatiane Spitzner nos momentos que antece deram sua morte – no último dia 22 de julho último, em Guarapuava, na região Central do Paraná – ficaram retidas na memória da jornalista de tal forma que ela resolveu arregaçar as mangas e reativar um movimento que fez história na década de 80: o “Quem Ama Não Mata”.

Na época suscitado por uma série de assassinatos de mulheres por seus companheiros – como o da socialite Eloísa Ballesteros, morta a tiros pelo marido, em 25 de julho de 1980. Apenas 17 dias depois, foi a vez de Maria Regina dos Santos Souza Rocha, assassinada por, entre outros motivos, querer retornar ao mercado de trabalho e usar biquíni. Quatro anos antes, a morte da pantera de Minas Angela Diniz já havia ganhado as manchetes de todos os jornais. Naquele início dos anos 80, atuando em uma emissora de TV, Mirian e outras mulheres, como Dirlene Marques, inspiraram-se na frase anônima espalhada em muros da capital mineira para criar o movimento, que se espraiou do Oiapoque ao Chuí. Não bastasse, inspirou uma minissérie homônima, de 1982, da Rede Globo, com Marília Pêra e Claudio Marzo. 

Mas o que foi o Quem Ama Não Mata matricial? Em termos de ação efetiva, constituiu-se na elaboração e leitura de um manifesto, em um ato que contou com 400 pessoas, como a da poeta Adélia Prado (que veio de Divinópolis para o evento na época). E, ainda, de organizações como a Liga das Mulheres Católicas. A semente germinou e inspirou políticas públicas, como os conselhos estaduais da mulher, o nacional e, anos mais tarde, as delegacias de mulheres (BH ganhou a sua primeira em 1985, sob o comando da delegada Elaine Matozinhos). Mas, mesmo com a criação de outros mecanismos para tentar coibir agressões que chegaram a ser relativizadas sob o hoje inacreditável argumento da “legítima defesa da honra”, os crimes praticados contra a mulher seguem povoando as páginas da história do Brasil. 

E é aí que toda essa história retorna a Tatiane Spitzner. Em julho último, a advogada voltava de uma noitada com o marido, Luis Felipe Manvailer, quando, após uma discussão, passou a sofrer uma série de agressões registradas por câmeras de monitoramento localizadas na parte externa, bem como na garagem e no elevador do prédio onde o casal residia. Nelas, é possível ver o desespero da moça e suas tentativas de fuga. Minutos mais tarde, uma câmera flagra o corpo da moça sendo recolhido, na rua, pelo marido. À Justiça, Manvailer sustentou que ela teria se jogado da varanda. O laudo da necropsia, divulgado em setembro pelo Instituto Médico Legal, porém, aponta que Tatiane morreu antes da queda, por asfixia mecânica, causada por esganadura – e com sinais de crueldade.

Com a conclusão do IML, o nome da moça passou a integrar a lista que situa o Brasil no quinto lugar no ranking mundial de feminicídios. Em 2017, o país registrou 1.133 mortes de mulheres dentro dos contornos da tipificação, hoje abarcada pela lei 13.104/2015, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff e que considera o feminicídio um crime hediondo. Evidentemente, junto a Tatiane, centenas de mulheres morrem anonimamente no Brasil vítimas desse tipo de violência que implica em a mulher ser morta por razões ligadas ao fato de ser mulher. Como lembra Mirian, são crimes que geralmente envolvem uma relação íntima, sendo praticados pelo parceiro, e na qual havia uma situação de poder estabelecida. O caso da paranaense se tornou emblemático justamente pelos vídeos que mostram o tormento que a vítima viveu antes de ser morta.

“Evidentemente, todas as mortes me sensibilizam, mas essa em especial me tocou pelas imagens que temos dos momentos que a antecederam: mesmo que mudas, quem as assiste ‘ouve’ o grito dela. Ali, a morte dessa moça está sendo anunciada. A gente vê que ela está pedindo socorro – mas ninguém a ajuda! Ninguém fez nada por ela”, indigna-se Mirian.

Na última quinta-feira, dia 1º, a edição online da revista “Marie Claire” publicou o nome de Tatiane Spitzner em meio aos de outras 298 brasileiras mortas de 1º de janeiro a 17 de outubro deste ano, “pelas mãos dos seus maridos, namorados, amantes, ex-amores e outros homens”. 
O levantamento da revista foi feito a partir de reportagens de jornais, visto que, lembra a matéria, não há um levantamento oficial do governo brasileiro. 

Novo manifesto será lançado
Passados 38 anos do manifesto “Quem Ama Não Mata”, pois, o movimento ressurge visando, neste primeiro momento, formatar um texto, a ser endereçado a todas as esferas pertinentes “requerendo políticas públicas de proteção da mulher”, lembra Mirian. “E possibilitando que a Lei Maria da Penha (2006) seja efetivamente cumprida – pois só a sua existência não adianta, há que se ter toda uma cultura em torno – dos agentes de segurança, para citar um exemplo”, salienta ela.

O lançamento do manifesto será na próxima sexta (9), na Praça Afonso Arinos (confluência das avenidas João Pinheiro e Augusto de Lima), a partir das 18h. A proposta é reunir entidades e grupos representativos da luta pelos direitos da mulher, incluindo estudantes, sindicatos, associações de classe; e, claro, o público-alvo. O local foi escolhido por sua simbologia política, bem como por ser central. “Vamos ter de 10 a 15 falas, rápidas e a leitura do manifesto. Depois, performances, dança do passinho, canto, poesia”, diz Mirian, frisando que, apesar de se tratar de um ato político, na acepção do termo, não é partidário. “E sim, suprapartidário”. 

Antes, no dia 8, a jornalista, professora e pesquisadora Valéria Said ministra aula e comanda o bate-papo “Roupas Subversivas e Feminino”, das 18h às 20h, no Museu da Moda (rua da Bahia, 1.149).

Entraves na aplicação de leis

Trabalhando 20 anos com o enfrentamento à violência contra a mulher, a psicóloga e professora da UNA Simone Pereira Vasconcelos ainda se assusta com a banalidade dos motivos que levam alguns homens a praticá-la. “São aspectos muito banais! E preocupante, leva a uma leitura de retrocesso”, pontua. Já quando instada a citar avanços, Simone recorre às leis Maria da Penha e do feminicídio. “De fato, marcos divisórios. Apesar das dificuldades estruturais de implementação, das críticas, legitimam a luta – e fazem uma diferença real no processo jurídico e no atendimento à mulher”.

Para a pesquisadora Marlise Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade Federal de Minas Gerais (Nepem/UFMG), a lei Maria da Penha é, mais que uma legislação, uma política pública. “Já temos 12 anos de existência, no entanto, na minha opinião, um dos gigantescos gargalos é justamente a não implementação de vários dos dispositivos e dos princípios de política judiciária previstos ali”, critica. 

Um dos exemplos seria a criação das varas especializadas. “Em Minas, por exemplo, só há duas varas, e localizadas em BH. Veja, não dá para acreditar que os crimes de violência contra a mulher ocorram ‘privilegiadamente’ na capital – infelizmente, entre muitas aspas, ele é bastante democrático. Está acontecendo em todas os mais de 900 municípios do estado! Então, seria necessário ter essas varas também no interior. E não só. Ter, nelas, uma equipe multidisciplinar, com psicólogo, assistente social, juízes e promotores de justiça em quantidade suficiente para enfrentar o tsunami de denúncias: porque a verdade é que tem crescido não só a violência contra a mulher como as denúncias. E infelizmente essas varas estão abarrotados de processos, é realmente impossível lidar com o quantitativo de denúncias”. 

A pesquisadora entende que as medidas protetivas são outra parte importante das políticas públicas relacionadas ao enfrentamento da violência contidas como elemento fundamental na lei Maria da Penha. “E existe um atraso gigantesco do poder judiciário, que não consegue emiti-las em tempo célere. Veja, é para isso que servem, para proteger a vida das mulheres. O que se vê, analisando o caso de mulheres assassinadas, é que muitas tinham essas medidas protetivas decretadas! Portanto, não só se demora muito para a propositura das medidas como a polícia não tem a menor infraestratura para o controle dos agressores”, lamenta. 

Marlise lembra que, em países mais avançados, os agressores sexuais andam com tornozeleiras eletrônicas. “Caso se aproximem de fato de sua vítima, um dispositivo é acionado e a polícia intervém a tempo para salvar a vida. Isso é residual no Brasil. A gente começou a implantar esse sistema, mas ele praticamente inexiste. Faltam também capacitação, campanhas públicas para enfrentar a violência... Então, se você cria uma lei e ela vira apenas letra, se as ações nela previstas não se viabilizam efetivamente, essa é uma maneira clara de sabotar, de fazer com que a lei, ao fim e ao cabo, seja ineficaz para aquilo a que ela veio. E por isso estamos vemos essa escalada”.

Ainda assim, ela entendo que, em seu cerne, a lei Maria da Penha não precisa ser modificada. “É uma lei excelente. O que precisa ser modificada é a mentalidade do poder judiciário. E, num contexto mais amplo, atribuir de fato dignidade e importância a essa temática e fazer o que está previsto legalmente, cumprindo aí a missão de ofício, que seria implementar uma lei aprovada pelo Congresso Nacional há 12 anos e que de fato ainda capenga na sua aplicação real”, advoga.

Números da violência contra a mulher*

Dados O Estado registra 1,1 crime de feminicídio por dia, uma das maiores taxas do país, com 433 casos em 2017. Os dados são da Secretaria de Estado de Segurança Pública de MG e apontam um aumento de 9% frente a 2016.

No país Mais de um quarto dos casos de homicídios no país são contra as mulheres. Do total de 4.539 homicídios em 2017, 1.133 são de feminicídios, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018.

Dolo As mulheres são as maiores vítimas de violência doméstica pelo crime de lesão corporal dolosa. Em 2017 somaram 193.462 os casos registrados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018. Minas Gerais situou-se em quarto lugar no país com 22.670 casos. Em primeiro lugar vem São Paulo com 50.665, seguido do Rio de Janeiro com 24.206 e Rio Grande do Sul com 22.980 casos.

Estupro É um crime que vem aumentando no país com 61.022 casos em 2017, alta de 10% frente aos 55.070 ocorridos em 2016. É o que mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, que coloca Minas Gerais em quarto lugar no país com 5.199 casos, atrás de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Paraná. A cada 11 minutos ocorre um estupro no Brasil. 70% das vítimas são crianças e adolescentes. No entanto, calcula-se que estes números retratem apenas 10% do que realmente acontece.

180 É o número da Central de Atendimento à Mulher, criado pela Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) ligada à Presidência da República. Disponível 24 horas, recebe denúncias anônimas de todo o país. Os casos são encaminhados ao Ministério Público e investigados – a vítima pode ser solicitada a comparecer junto à delegacia.

*Dados citados pelo movimento Quem Ama Não Mata​

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