Alma encantada

Bairro de Santa Tereza se divide entre o pacato e a boemia

Região mescla passado e presente sem deixar de mirar o futuro

Por Alex Bessas
Publicado em 21 de julho de 2018 | 03:00
 
 
 
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Quando publicou o livro “A Alma Encantadora das Ruas”, em 1910, João do Rio (1881-1921), citando Balzac (1799-1850), foi categórico: as vias nos dão impressões humanas. A observação é especialmente latente ao andar pelas que cortam o bairro de Santa Tereza, na zona Leste de BH. Mas não pense ser fácil encontrar adjetivos certeiros, pois as ruas, como humanos, são ambíguas e o bairro acolhe universos aparentemente díspares. É, afinal, reduto de um povo pacato, mas que não foge à luta; uma região sensivelmente familiar, mas também reconhecida zona boêmia; um celeiro artístico com vocação especial (e eclética) para a música. 

Basta percorrer o bairro para notar que, ali, passado e presente convivem harmonicamente, como descreveu o poeta Libério Neves no livro “Santa Tereza” (Conceito Editorial, 2010): “Prateleiras antigas e tecnologia, armarinho e supermercado, mercearias e restaurantes coexistem, sempre atendendo a todos – ontem e hoje”, observou. 

Paradoxos de um lugar que, por um lado, soube preservar sua memória histórica e, por outro, se abre a iniciativas vanguardistas e modernas, como o Território de Arte Urbana (TAU): com sua primeira edição tendo Santa Tereza como palco, o projeto selecionou 15 artistas, entre mais de 200 inscritos, para construir um circuito de artes que vai se iniciar na praça Duque de Caxias, passando pelas ruas Mármore, Dores do Indaiá, Divinópolis e Silvianópolis, até culminar na Praça Joaquim Ferreira da Luz, onde acontecerão mais intervenções no muro do metrô, na parte baixa do bairro. 

O pontapé inicial ocorre na terça (24), mas o projeto se estende até sábado (28), com vasta programação. De diversas linguagens artísticas, as obras vão colorir fachadas de comércios e muros, com trabalhos que vão do grafite e muralismo a instalações e fotografias, escultura e bordados. O objetivo não é apenas a exaltação da arte urbana, mas também a incorporação desse gênero, mais associado aos grandes centros, verticalizados, a uma escala menor – e, por isso, mais intimista. Um desafio que não poderia encontrar terreno mais ideal que Santa Tereza e suas idiossincrasias e dualidades, como examina Gisele Milagres, idealizadora do TAU.

Um bairro único

A conservação de uma identidade, diga-se, é algo caro aos moradores de Santê (como o bairro é carinhosamente apelidado). As palavras do historiador, escritor e jornalista Luis Góes, 74, confirmam: “Daqui a uns 20 anos, espero que, quando uma pessoa quiser saber o que é um bairro de BH, que venha aqui. Esse é o único bairro que existe”, entende ele, que soma 14 publicações sobre a região, entre livros e revistas.

Um dos fundadores e ex-presidentes da combativa associação de bairro e membro do mais tradicional clube da região, o Oasis, Góes tem memória enciclopédica. Lembra, por exemplo, que a edificação mais antiga dali está na rua Hermilo Alves, 275, e foi erguida em 1910, por um português. Recorda que a região já foi uma colônia que reunia brasileiros e estrangeiros e servia de suporte à construção da cidade. Ri de quem acredita que o lugar já foi conhecido por “Fundos da Floresta” – foi só um mal entendido.

É com essa precisão que situa: Santa Tereza começou a se tornar um destino na década de 1940, quando a vocação para a vida noturna já dava sinais nos clubes locais, que reuniam seresteiros da cidade.

Enquanto papeia, em frente à Confraria São Gonçalo – garagem que funciona como espaço de reunião às segundas –, Góes é a toda hora interrompido para cumprimentar passantes, que reconhece por nomes ou apelidos. Mas logo retoma o assunto. “Já que não posso impedir que os imóveis sejam derrubados, os mantenho em memória e escrita”, diz, de forma quase blasé, por mais que a frase soe um tanto cabalística. 

Felizmente, Góes encontrou aliados. Criado em 1995, o grupo “Salve Santa Tereza” ganhou novo fôlego em 2010, “quando uma meninada retomou a defesa do bairro”, lembra o historiador. Foram muitas as lutas – mas também as conquistas, entre elas, o pré-tombamento de 288 casarios e a classificação do bairro como uma Área de Diretrizes Especiais, que limita a altimetria dos prédios, evitando a verticalização da região.

Mas os ares de renovação também passam por lá, como garante Eliza Peixoto, do portal “Santa Tereza Tem”. Ela lembra que, enquanto estão preservados espaços tradicionais, como o Mercadinho Bicalho (mistura de mercearia, sacolão e bar), e os bares/restaurantes Bolão e Orlando, a paisagem ganha cada vez mais diversidade. “São dezenas de ateliês e vários estúdios e escolas de música”, narra. Assim, “a cultura, as tradições populares, religiosas e a hospitalidade fazem parte do dia a dia do bairro”.

Além disso, o lugar vem se firmando como circuito gastronômico. Por lá estão espaços como Birosca S2, Bitaca da Leste, Protótipo Bar e Santa Pizza. Frederico Felippe, gerente deste último, acredita que mais casas devem despontar, pois a procura pela região é crescente. Mais uma prova disso é a realização do “Circuito Gastronômico de Favelas”, neste domingo (22), às 12h, perto do Bar do Orlando.

Na mesma esquina

Hoje vivendo em Trancoso, na Bahia, Gabriel Guedes, 40, faz parte da “meninada” a que o historiador Luis Góes fez menção. O instrumentista, que já foi até vice-presidente da associação de bairro, compara o reduto com a Vila Madalena, em São Paulo, e o Santa Teresa, no Rio de Janeiro: “é um lugar pacato, mas que conserva uma identidade artística muito forte”.

Durante a entrevista, feita por telefone, Guedes, mesmo distante, praticamente descreve as cenas que se desenrolavam na praça Duque de Caxias, onde a reportagem estava. “Há muitas características interioranas: gente sentada na calçada, jogando bola, meninos de bicicleta, passeando com cachorro... Coisas comuns a cidadezinhas mineiras que o bairro conserva”, observa, acrescentando que a calmaria esconde uma história de muita luta. 

Guedes lembra que alguns moradores ainda têm posturas com um quê de intransigente. A realização do Carnaval, por exemplo, esbarra em obstáculos. E olha que foi ali que surgiu a Unidos de Santa Tereza, tricampeã em 1990. Com o renascimento da folia na cidade, Santa Tereza voltou a ter protagonismo, com blocos como “Volta, Belchior” e “Bloco da Esquina”.

Quem também celebra a efervescência cultural de Santê é o compositor e guitarrista Toninho Horta. Um dos expoente do Clube da Esquina, movimento cujos sons começaram a ser gestados ali, ele lembra que o bairro foi berço também de outros acordes, como o metal do grupo Sepultura e o pop do Skank. 

Horta diz ainda encontrar muito do que viveu “nos tempos do Clube” nos dias atuais. Para ele, com a proliferação de ateliês “e uma clientela sedenta por música e arte, o bairro soube conservar a vocação para a improvável combinação de boemia e tranquilidade”.

Gabriel que o diga. Sempre que volta a BH, o filho de Beto e neto de Godofredo Guedes procura organizar saraus, feito o que aconteceu na última quarta (18), na icônica esquina da rua Paraisópolis e Divinópolis – ou no “encontro do paraíso com o divino”, como ele define. Nela, está a prova cabal de que Santê soube dar um nó no tempo: ainda dá para ouvir uma canja de ninguém menos que Toninho Horta naquele modesto lugar onde tudo começou.

Arte urbana sob outro prisma

Mais associada aos grandes centros, o exercício de pensar arte urbana é, muitas vezes, imaginar a disputa da linguagem artística com o excesso de informação das verticalizadas metrópoles. Afinal, é esse o lugar de origem dessa escola artística. No Santa Tereza, no entanto, a lógica é diferente. 

A idealizadora do Território Arte Urbana (TAU), Gisele Milagres, viu a ideia surgir quando fazia mestrado em Madri, em 2014, e travou contato com o Calle, projeto que acontece anualmente no bairro Lavapiés – que também é uma região que preservou casarios. Por aqui, Gisele acredita que as obras terão um efeito diferente de outros projetos que colorem BH, como é o caso do Circuito Urbano de Artes (Cura) ou o Profeta Gentileza.

“No centro, os murais e grafites costumam ser vistos de passagem, às vezes, uma vista rápida, por medo de não ser atropelado ou de atropelar alguém”, examina ela, completando que o TAU dá outra perspectiva à arte urbana. Frederico Felippe, gerente do Santa Pizza, casa que integra o já consolidado circuito gastronômico do Santa Tereza, concorda com a moça. E vai além: por ser um bairro que tem construções em escala menor, as obras poderão ser apreciadas como se estivessem em uma galeria, arrisca. 

“Na região central, até as calçadas são maiores e, então, passamos ao largo dos edifícios. Aqui não, as pessoas estarão próximas, muitas vezes caminhando a pé pela redondeza”, analisa. Destacando o surgimento de mais casas voltadas para a experiência gastronômica, Felippe acredita que o TAU reforça ainda mais o potencial turístico da região – algo que já é notadamente sensível, diz. 

O Santa Pizza, vale dizer, também ganhará uma intervenção: uma árvore, feita de sucata pelo artista plástico Guilherme Pam, de Guapé, será colocada na calçada do restaurante.

Abertura

Assinando a curadoria do circuito conjuntamente a Tales Bedeschi, Marcela Yoko comemora a disposição dos empreendedores em receber a ação. “Se antes eles pensariam em criar identidade visual meramente mercadológica, agora recebem trabalhos que não estão interessados em vender, mas em fazer pensar questões da vida, da modernidade”, diz, citando que, ao abrir o edital, todo tipo de proposta foi aceita.

O filtro foi, basicamente, se adequar ao bairro – e que fossem pensadas obras que “falassem do comum, que se comunicassem com todas as pessoas”. A expectativa, afinal, é criar a “experiência de estar na cidade de uma maneira mais humana, mais íntima”, aponta.

O fato de ser formado majoritariamente por mulheres se deu de forma espontânea, durante o processo de curadoria, e até surpreendeu Marcela. Uma das artistas selecionadas, Zadô Luz confessa que não estava muito certa do que ia fazer com o material fotográfico que reunia quando se inscreveu no edital. A fluminense, agora, se diverte com a coincidência de ter registrado, justamente, regiões limítrofes a Santa Tereza.

Outra selecionada foi Camila Lacerda, única moradora do bairro entre os 15 escolhidos. Seu trabalho, por sinal, é metalinguístico: ela levará para Santê pinturas que reproduzem os becos da Vila Dias. “Como uma integrante que é do bairro, quero evidenciar essa região como ela de fato é, e quebrar esse muro invisível que ainda existe”, garante.

Seja como for, a realização do TAU remete ao parágrafo que abre o livro (homônimo ao bairro) do poeta Libério Neves: “Santa Tereza lembra-me, por extensão, a imagem de um arco-íris. Cheguei depois de seu começo e não permanecerei ‘para sempre’. Mas, enquanto vivo, faço parte de suas vivas cores” – cores que, diga-se, ficarão ainda mais vívidas.

Tráfego ameno favorece aura acolhedora

Pode ser tentador recorrer a explicações mágicas para a conservação do Santa Tereza, um bairro que se mantém tradicional e familiar, boêmio e artístico. Mas urge pensar menos no fenômeno como dotado de uma “aura especial” e examinar com mais acuidade as circunstâncias que possibilitaram a preservação dessa identidade. É o que alerta o urbanista Roberto Andrés.

Pesquisador do grupo Cosmópolis e professor da UFMG, Andrés lembra que o bairro “emana o que foi a vida em muitas cidades brasileiras – BH, inclusive”.

Ocorre que o que ainda hoje é visto em Santê – como a presença forte de um comércio local, onde proprietários são também moradores, ou da rede de convivência ampla, bem como a vida noturna – foi se deteriorando em outras regiões, como a Lagoinha. “Lá também havia esse aspecto boêmio, que se perdeu com o advento de viadutos, duplicação das avenidas Antônio Carlos e Pedro II”, examina, completando que “o trânsito intenso coloca a vida das pessoas em risco e ninguém quer ficar parado em lugares cheios de barulho e poluição”.

No caso de Santa Tereza, persiste a característica de ser muito mais um destino que um lugar de passagem – afinal, não há grandes vias de ligação de regiões que atravessem o lugar. 

Até hoje, por sinal, só duas linhas de ônibus circulam por lá. Dessa maneira, o bairro privilegia o pedestre, fugindo de uma lógica “rodoviarista”, como ele nomina.

Andrés fundamenta seu ponto de vista com um estudo do urbanista norte-americano Donald Appleyard, feito na década de 1960. Nele, o estudioso demonstra como moradores de regiões com menos tráfego têm mais amigos entre seus vizinhos e frequentam mais o comércio local do que aqueles que vivem em lugares onde há maior trânsito, mesmo que a tipografia seja parecida. 

Para ele, esta seria a peça chave para que o Santa Tereza se mantenha como lugar de agregação da atividade humana.

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