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Corrente do bem

Força-tarefa se forma na redes sociais para apoiar LGBTs que queiram se casar até o final deste ano por temerem perda de direitos; serviços gratuitos vão de cerimonial a fotografia

Por Alex Bessas e Litza Mattos
Publicado em 10 de novembro de 2018 | 04:00
 
 
 
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Uma verdadeira força-tarefa se desenhou no horizonte. Ou melhor, nas redes sociais. Através delas, brasileiros de diversos setores estão se mobilizando desde a última semana para garantir aos casais homoafetivos a realização de um sonho: o casamento – que muitos deles decidiram adiantar em reação ao temor de que a união entre pessoas de mesmo sexo deixe de ser reconhecida pelo Estado a partir do ano que vem – direito este garantido por uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2013.

Embora especialistas avaliem que a mudança de entendimento em relação à resolução não deva ser um processo fácil, a eleição de um presidente e um congresso de perfil majoritariamente conservadores provocou uma corrida aos cartórios para a troca de alianças ainda neste 2018. 

E o desejo destes tantos casais gerou uma rede solidária espontânea interessada em garantir que os LGBTs cumpram, da melhor forma possível, seus adiantados planos. Trata-se, pois, de uma mobilização capaz de congregar profissionais de diversas searas: músicos, cozinheiros, fotógrafos, advogados, produtores e designers pipocam voluntariamente, fazendo de seu ofício formas de solidariedade e ativismo. Um formulário que busca catalogar a oferta destes serviços dá ideia da adesão: criado na última segunda (5), o documento reúne dados de mais de 500 voluntários de diversos lugares do país. Só em BH, há pelo menos 30 nomes registrados – e este número, possivelmente, é ainda maior.

O orientador social e fotojornalista Hemerson Morais, 38, é exemplo de um destes tantos mobilizadores. Através das redes sociais, ele tomou conhecimento dessa “corrente do bem” e resolveu aderir à causa. O profissional oferece aos casais ensaio fotográfico e registro da cerimônia, tudo de graça. Detalhe: ele não é um LGBT, mas garante que sobram razões para apoiar a iniciativa.

“Os quatro momentos mais importantes da minha vida foram o meu casamento, o nascimento dos meus filhos e a conclusão do meu curso superior”, enumera. “E duas dessas coisas eu só consegui por ter a chance de estruturar minha vida ao lado da minha companheira”, diz, agradecido. Para ele, portanto, a luta pela equiparação do casamento, como um direito para todos, “é uma questão de dignificar a vida das pessoas. Se um casal hétero pode se casar, um casal homoafetivo também pode. E se o direito de alguém não é atendido de forma integral, eu vou lutar para que se garanta a integralidade de seus direitos”, pontua.

O sentimento de visceral empatia que as palavras de Morais traduzem encontram explicação em sua própria trajetória. “Sou um homem negro, que nasceu em uma favela, que sofreu uma série de preconceitos. Sou alguém que só conseguiu concluir a faculdade graças a programas sociais. Se eu encontrei um amparo social que me permitiu concluir o curso e diante das dificuldades que vi e vivi, todo o abandono do Estado a quem é diferente e as camadas mais marginalizadas da sociedade, por tudo isso, eu aderi ao movimento, afinal, eu me identifico com essa luta por direitos”, conclui.

Outra pessoa que integra esse mutirão é a psicóloga e musicista Laís Arantes, 27. O nome dela, aliás, não aparece na mencionada planilha. No entanto, através de seu perfil no Instagram, ela ofertou sua voz e violão para as cerimônias. “Como cantora, decidi fazer parte do movimento para levar música e alegria aos casais que vão trocar as alianças às pressas”, comenta. O retorno veio rápido. “Já tive procura de alguns casais e espero conseguir ajudá-los”, comemora.

“É muito importante saber que existem pessoas, inclusive que não integram a classe LGBT, que se preocupam com a liberdade do outro e se mexem para fazer o sonho acontecer. Sonho este que milhares de pessoas, de qualquer orientação sexual, têm”, comenta ela, que classifica o gesto como “humano, empático e do bem”. “Vendo tudo isso acontecer e sentindo na pele a dificuldade de usufruir de direitos importantes para a vida a dois, eu não poderia ficar de fora”, conclui a artista, que sim, está representada nas letrinhas do movimento LGBT.

Preparativos
Juntas há um ano e quatro meses, Laís e a também psicóloga Camilla Hordones Ribeiro, 34, planejavam se casar em 2020. “Estamos providenciando todos os documentos necessários com muita correria e esperamos que nosso casamento ocorra ainda este ano, ou que, pelo menos, consigamos dar entrada no processo antes de 2019”, comenta a cantora. Camilla completa que essa corrida contra o relógio é decorrente de uma série de incertezas. Para ela, há uma flagrante fragilidade jurídica do entendimento acerca do casamento homoafetivo – estabelecida apenas pela resolução do CNJ. “Considerando que o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não é lei, decidimos antecipar, numa tentativa de garantir nossos direitos enquanto casal perante a lei”, resume.

E foi com um misto de entusiasmo e esperança que Camilla viu se formar essa crescente rede de apoio aos casais LGBTs. “Este tipo de apoio e voluntarismo representa, antes de tudo, a possibilidade e a esperança sim, de podermos, pelo menos, continuar sendo quem somos”, diz, inteirando que, “mais que ajuda na celebração, é um exercício de empatia, um movimento que traz visibilidade para essa luta por equidade e um ato de amor”.

Foi justamente entre amigos solidários que elas buscaram ajuda para a lida com a burocracia que o enlace demanda. Aliás, entre amigos de Belo Horizonte e do interior de Minas, elas citam pelo menos mais quatro casais que também planejam antecipar a oficialização do matrimônio. 

Dados mais recentes da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) – representa a classe dos Oficiais de Registro Civil de todo o país – indicam que, de fato, há um sensível crescimento no número de casamentos entre pessoas do mesmo sexo: entre setembro e outubro, houve aumento de 36% no número de cerimônias se comparado com o mesmo período de 2017. A julgar pela mobilização observada nos últimos dias, tais números devem se ampliar ainda mais até o fim do ano. O publicitário Pedro Costa e empresário Leonardo Couto, aliás, devem engrossar essas estatísticas. 

“Leo e eu nos conhecemos no final de 2016 e foi tudo muito rápido. Quando vimos já estávamos morando juntos. Agora em dezembro completamos dois anos de relacionamento”, lembra o publicitário. “Nossa intenção era realizar o casamento em 2019 ou 2020, em alguma data nerd que fosse representativa para nós”. Diante do que classifica como uma “onda conservadora”, decidiram antecipar seu sonho. “A perda de direitos pode parecer um horizonte distante para alguns, mas uma ameaça constante para grupos sociais que demoraram tanto para conquistar certos direitos”, sinaliza.

“Estamos acertando as burocracias do casamento, e devemos entrar com o pedido agora em novembro e aguardar os 40 dias solicitados para oficialização”, expõe Costa, contando que tudo deve estar pronto até o final de dezembro. Assim como Laís e Camilla, os rapazes compreendem a cerimônia “como forma de conseguir a manutenção dos direitos de uma pessoa casada”.

Veto aos LGBTs não será simples

O receio de que o casamento homoafetivo deixe de ser reconhecido pelo Estado a partir do próximo ano se tornou um sentimento mobilizador, capaz de provocar uma verdadeira corrida aos cartórios para garantir que o rito matrimonial aconteça ainda em 2018. Decisão que, aliás, ganhou respaldo da presidenta da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, que recomendou aos casais que antecipem o enlace.

Mas se a declaração de Maria Berenice fez soar sinal de alerta, a opinião está longe de ser uma unanimidade. “Acho este alarde e estímulo a uma corrida aos cartórios totalmente inoportuna”, critica o advogado e procurador de Belo Horizonte Luiz Fernando Valladão. “A matéria já foi definida pelo Supremo Tribunal Federal, que já estabeleceu uma igualdade no tratamento para as relações hétero ou homoafetivas”, explica, se referindo a uma decisão de 2011, que reconheceu a união estável para casais de mesmo sexo.

Além disso, “quem quiser se casar ou firmar união pode fazê-lo nos cartórios, baseado também em uma resolução do Conselho Nacional de Justiça”, reforça, observando que, em 2013, a entidade do poder judiciário proibiu os cartórios de recusar habilitação aos casais LGBTs.

O posicionamento do procurador é endossado pelo doutor em ciência política e membro do Comissão da Diversidade Sexual da OAB de Minas Gerais, Thiago Coacci. Imediatamente, ele faz uma distinção, reforçando que o conselho de Maria Berenice não representa a opinião da OAB, mas sim uma opinião pessoal dela.

Coacci reconhece que, ao longo dos anos, o congresso brasileiro tem se tornado mais conservador. “São grupos que estão organizados. Em 2013, por exemplo, Marco Feliciano chegou a ocupar a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara”, cita. Com a ascensão de grupos fundamentalistas ao poder, Coacci não nega que há riscos de retrocessos. No entanto, pontua que há entraves legais e estes processos, respeitada a Magna Carta, levam tempo. “No entanto, eu consigo imaginar cenários prováveis, que seriam os piores para os LGBTs, mas demandariam tempo e esforço”, especula o integrante da OAB. 

Sobre a possibilidade de o direito ao casamento entre pessoas de mesmo sexo deixar de existir, ele pontua que seria necessário uma alteração na Constituição Federal. Para isso, os parlamentares teriam que reunir 3/5 da totalidade dos membros em dois turnos de votação nas duas casas do Congresso Nacional. “Claro, se for uma prioridade, se a base estiver mobilizada, pode passar. Mas há um rito e este processo levará tempo”. 

A outra possibilidade que Coacci prevê é que o CNJ mude seu entendimento e retire a proibição dos cartórios recusarem a habilitação aos casais homoafetivos. “Se a resolução 175 cair – e isso pode acontecer, então alguns cartórios podem voltar a recusar, mas outros podem continuar a realizar o casamento para LGBTs. E aos que se recusarem, ainda é possível judicializar e ganhar estas causas”, reforça.

Consulta pública
O doutor em ciência política aponta, ainda, para a inconstitucionalidade do Projeto de Decreto Legislativo 106, proposto do senador Magno Malta, que sustaria os efeitos da resolução do CNJ. “O Congresso não tem poderes para sustar efeitos de uma resolução de um órgão do Judiciário. Por isso, desde 2015 este projeto não tramita”, critica.

Mesmo diante da impossibilidade da medida proposta por Magno Malta ser levada a cabo, foi aberta uma consulta pública sobre o decreto pelo Senado Federal. Até o fechamento desta reportagem, na noite da última quinta-feira (8), a maioria absoluta das pessoas que participaram da pesquisa se posicionou contrária ao projeto. Foram registradas 426.218 manifestações negativas à mudança de entendimento, contra apenas 28.345 favoráveis. 

A expressiva diferença reverbera recentes dados apurados pelo Datafolha. Divulgada no dia 27 de outubro, um consulta do instituto de pesquisas demonstrou que 74% da população acredita que a homossexualidade deveria ser aceita por toda a sociedade – um salto de 10% em relação a 2014, quando 64% dos brasileiros pensavam assim. Naquele ano, 27% disseram que essa orientação sexual não deveria ser aceita e agora são apenas 18%. Apenas 8% não souberam responder.

Ninguém solta a mão de ninguém

Se em um primeiro momento está se desenhando uma vasta rede para apoiar casais homoafetivos que pretendem se casar ainda em 2018, é provável que outras frentes se organizem para garantir direitos conquistados. É o que avalia Roberto Reis, coordenador do projeto de extensão “Una-se contra a LGBTfobia” e integrante do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH).

“Com as pessoas muito assustadas, pois este foi um tema muito presente durante as eleições, surgiram redes de apoio e solidariedade de forma meio emergencial, com prazo apertado”, observa. “Estes grupos e movimentos certamente vão continuar pensando em formas de ação diante de um novo cenário. Acredito que devem surgir novas redes daqui para frente”, aponta, citando uma movimentação em relação à retificação do nome civil.

A violência também preocupa. Estudos do Grupo Gay da Bahia, em 2017, indicam que 52% dos assassinatos contra os LGBTs do mundo aconteceram no Brasil. As recentes manifestações de intolerância têm provocado um clima de medo. Por tudo isso, para Reis, as manifestações de solidariedade vistas nos últimos dias são importantes e oportunas. 

O coordenador lembra a expressão “Ninguém solta a mão de ninguém”, cravada pela tatuadora belo-horizontina Thereza Nardelli, que viralizou nas redes sociais. “É esse espírito. Vejo que estão sendo criadas redes de apoio e acolhimento, o que é fundamental para que os LGBTs não se sintam sozinhos”, comenta.

A analista de marketing Nayane Mata, 33, se identifica como bissexual e ratifica a preocupação que Roberto Reis expressa. Ela lembra que viu até aqueles que dizem não possuir nenhuma especialidade a oferecer para uma cerimônia de casamento, mas que estão disponíveis para ajudar como puderem. “Se precisar de garçom, de apoio ou de carregar a mudança, tem gente disponível!”, diz. 

A moça não tem dúvida: essa rede de apoio fez que ela recuperasse “a crença no ser humano”. “Ainda mais quando você se sente ameaçado, é importante ver esse tipo de atitude”. Não é à toa que ela se ofereceu como fotógrafa e sua noiva, Flávia Cardoso, 26, resolveu apoiar com a banda dela. “Acho que isso fortalece o movimento e, assim, talvez a gente consiga diminuir o medo de quem sofre com o preconceito e inibir atos de intolerância e violência”. 

Em tempo: Nayane e Flávia namoram há quatro anos e oito meses e também anteciparam seu casamento. Elas pretendem trocar alianças entre os dias 20 e 30 de dezembro.

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