Na terapia

Mentes torturadas

As eleições têm pautado as relações, causado sofrimento e, agora, o voto vai ao divã

Por Alex Bessas
Publicado em 19 de outubro de 2018 | 15:36
 
 
 
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“Festa da democracia”. Ao menos a cada dois anos, essa frase volta a ser empregada com constância no país. É quando milhões de brasileiros, devidamente munidos de seus títulos de eleitor, se dirigem às urnas – agora eletrônicas – para praticar o direito ao voto. Neste 2018, a “festa” continua vigente, mas, para manter uma analogia com a palavra, não seria impertinente dizer que uma grande ressaca já vem abatendo o eleitorado que acompanha, a ferro e fogo, a corrida presidencial.

Com os ânimos à flor da pele, tem sido comum ouvir histórias de pessoas, de um lado ou de outro do espectro político, sofrendo um certo mal-estar. São fartos os relatos daqueles que se sentem angustiados, abatidos e até paralisados por uma sensação de medo. Relações antes cordiais ou mesmo de vínculo familiar e de amizade sofrem abalos.

E foi assim que o voto, em uma proporção até mesmo inédita na história, foi parar no divã. É o que comprovam as histórias que o Pampulha ouviu desde antes do fim do primeiro turno, no dia 7 de outubro, mas que se tornam cada vez mais contundentes à medida em que se aproxima a data em que a população vai decidir se Jair Bolsonaro (PSL) ou Fernando Haddad (PT) será o novo presidente do Brasil.

“As pessoas levam para a análise aquilo que está causando profundo incômodo. E, este ano, ninguém deixou de falar sobre as eleições”, observa a psicóloga e psiquiatra Suzana Márcia Braga. Há 30 anos atuando profissionalmente, essa é a primeira vez em que viu todos os seus pacientes levando para o divã tudo aquilo que estaria em jogo com o seu voto. “Estão todos muito mexidos e até ameaçados”, comenta, informando que não interessa se o voto é na esquerda ou na direita: “A nação inteira está angustiada”.

“Não me recordo de uma época na qual a política influenciou tanto a vida das pessoas”, expõe Sérgio de Campos, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. “Elas trazem com frequência o tema da política para suas sessões e como a eleição tem afetado suas vidas. O sintoma mais frequente nos tempos do agora é a angústia”, ratifica ele, acerca da constatação de Suzana.

“Pelo lado da esquerda, um abatimento e uma apreensão no futuro cercado de dúvidas de como será um futuro governo e o risco de um retorno aos tempos de chumbo; por outro, do lado da direita, constamos sujeitos plenos de expectativas que estarão sujeitas ao risco de não se realizarem – acarretando sérias frustrações – tais como o fim da corrupção e a garantia de segurança”, examina Campos.

É nos estudos do francês Jacques Lacan (1901-1981) que o psiquiatra encontra explicações para o recente fenômeno: “Vivemos na era da incerteza no porvir. As dúvidas e as incertezas assolam a todos e fazem despertar a angústia, a ansiedade, o abatimento, a raiva, a tristeza, a insegurança, na medida em que, particularmente, a mídia digital notifica a possibilidade de golpe, de fraude ou de anulação das eleições”.

Relações estremecidas
Evidenciam o estado de divisão do país as constantes queixas de esgarçamento ou até rompimento de laços interpessoais por conta de conflitos políticos. Quem sentiu tal efeito na pele foi a advogada Thainá Scaridi. “Me assumi lésbica aos 18 anos e, embora nunca tenha performado feminilidade, só agora, aos 23, sofri meu primeiro episódio de homofobia”, revela, referindo-se a um familiar. A situação se desenrolou após um debate acalorado sobre escolhas eleitorais. “Então, ele, que foi uma das pessoas mais importantes na minha vida, disse que o fato de eu ser homossexual influenciava a sua filha”.

A desavença deixou um rastro de mágoa e os dois romperam com todo e qualquer tipo de ligação. Felizmente, Thainá encontrou no restante da família um porto seguro. “Recebi o apoio de todos”.

Apesar do baque, ela segue se posicionando. “Toda luta é válida, independentemente do resultado”, assegura. Hoje, para evitar mais estresse, opta por desligar notificações em publicações feitas nas redes sociais e, em casa, se atém ao descanso da militância – cerveja, chá ou café são boas pedidas, acompanham leituras e a companhia da namorada ou de amigos.

Aquele abraço
Foi justamente a busca por acolhimento e a percepção de abatimento que mobilizaram Nelma Costa. Professora do curso de cinema do Instituto de Comunicação e Arte, da UNA, ela vinha observando seus alunos cada vez mais cabisbaixos. Nas aulas, o rendimento dos discentes começou a cair significativamente. “As pessoas estão se sentindo encurraladas, não há clima para mais nada e eles têm dificuldades em se concentrar até nas tarefas mais fáceis”, diz.

Nelma lembra que é fundamental que os alunos encontrem um ambiente seguro para que exista aprendizado. Mas notícias de atos de violência desde o encerramento do primeiro turno das eleições começavam a paralisar os estudantes. Os progressivos relatos de situações de agressão registrados diuturnamente por meio de redes sociais e de iniciativas como o Mapa da Violência Eleitoral, que contabiliza mais de 70 notificações, ativaram uma sensação de iminente perigo.

Caso que se tornou emblemático foi o assassinato do capoeirista Mestre Moa, morto a facadas em Salvador, no último dia 8, por confessa motivação eleitoral. Além disso, o clima de insegurança é particularmente alarmante nas redes sociais. A Safernet, uma associação pela promoção de direitos humanos na internet, registrou expressivo aumento de 4.000% em relação a ataques xenofóbicos no ambiente online, após a apuração dos votos no primeiro turno. Também há queixas de hostilidade racial, sexual e até neonazista.

Diante desse cenário, a preocupação de Nelma se ampliou ainda mais quando ouviu, na lida cotidiana com os estudantes, conversas sensivelmente depressivas, que a fizeram intervir. Então, a professora, que tem formação em história e filosofia, reuniu alunos e professores em roda, fez a leitura de uma poesia e promoveu um abraço coletivo – reunindo alunos de todos os oito cursos do campus universitário.

Registrado em vídeo e postado no Facebook, a gravação do ato já superou dez mil visualizações. A repercussão pegou Nelma de surpresa. “Foi algo super simples, uma coisa pequena, sem pretensão”, diz. A professora lembra que seu intento com a ação foi demonstrar aos jovens que eles não estão sozinhos. “É o momento para ficar junto, mesmo que seja para lamuriar”, brinca. “O importante é que eles se sintam acolhidos”.

 

O país pede por conciliação

Enquanto os afetos são mobilizados pelo acirramento político e postulantes à Presidência da República ocupam o epicentro das atenções, a campanha eleitoral vem pautando as relações sociais. E se é chover no molhado dizer que o país está dividido, assusta a escalada de violência e intolerância que vem tomando o país.

Na cena contemporânea, o jogo político se redesenha, ganha novos vetores e atores. E as eleições de 2018 põem em relevo uma radical mudança de comportamento, como indica Sérgio de Campos, coordenador e preceptor da Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares. Agora, passamos a nos orientar “não mais por ideais dos quais somos a favor, mas por objetos a que somos contra e que repudiamos com o ódio”. Além disso, a polarização da sociedade é combinada à forte presença das mídias digitais, “que circulam em grande parte com conteúdo falsos” – como evidenciou o estudo conjunto da USP, UFMG e da Agência Lupa, indicando que das 50 imagens mais replicadas no WhatsApp, apenas 4 eram verdadeiras.

Por fim, há ainda a insurgência de movimentos que pareciam ter sido superados. “Todos esses elementos de um binarismo suprapartidário – num caldeirão fervente em fogo alto – afetam as pessoas independentemente de sua posição política”, comenta o especialista, que vê crescer o número de pacientes que buscam falar, no divã, sobre o tema.

Em um cenário em que vizinhos, amigos e familiares estão completamente divididos, o psiquiatra acredita que, se levados às últimas consequências, esse ódio e acirramento podem causar fraturas. “O país seguirá em frente depois das eleições. Mas como? Se algo se quebra, será como um bule de porcelana que se partiu e foi colado. O bule funcionará para servir o chá. Mas não será mais o mesmo, visto que existirão fissuras irreparáveis”, ilustra.

Dentro desse frágil organograma social, os novos atores políticos tentam se equilibrar entre o cansaço e a militância, entre o debate e o risco de que um posicionamento mais assertivo cause uma cisão irreparável.

O designer gráfico Lucas Alcântara, 31, reconhece de pronto estar esgotado. “Em 2014, já havia a polarização. Mas agora é diferente”, avalia o rapaz, pontuando as notícias falsas disseminadas nas redes sociais, a falta de empatia e os discursos radicalmente agressivos e intolerantes como elementos que fazem deste um momento difícil de ser atravessado.

Apesar de se sentir desgastado e, muitas vezes, irritado, Alcântara se mantém ativo e se vê na linha de frente na batalha contra as notícias falsas compartilhadas por amigos e familiares. “Eu sempre busco desmentir e me posicionar diante de discursos de ódio apresentando diversas fontes”, explica – sem deixar de observar que manter-se atuante assim tem seu preço. “Tenho certeza que não vou ser convidado para algumas festas de aniversários”, ri.

Um estresse particular para o ilustrador tem sido um grupo que reúne sua família no WhatsApp. O espaço se tornou terreno fértil para alarmismo e boatos – tanto que Alcântara chegou a sair da rede social. Mas retornou. “Fiquei imaginando que o pessoal ia continuar falando bobagem e seria importante ter alguém para ser meio que um contrassenso”, afirma. “Briguei com amigos, com parentes, com muita gente. Estou absolutamente esgotado, mas ainda prefiro demonstrar que existe uma outra opinião”.

Mesmo cansado, Alcântara gostaria até que o período eleitoral fosse protelado. “Ainda há muita história para ser desmentida”, diz, completando que, na inglória luta contra as fake news, algumas precisou esclarecer até cinco vezes.

Para o bem
O advogado Rafael Moreira, 33, é outro que tem zelado por manter enlaces afetivos, apesar dos posicionamentos políticos. “Eu e meus pais nunca tínhamos tido nenhum tipo de desentendimento por conta de um processo eleitoral”, comenta. Com o fim do primeiro turno, tiveram a primeira briga.

“Eu estava assustado com a escalada de violência que vinha se desenhando e me senti pessoalmente afetado pelas escolhas deles”, expõe Moreira. Um dia depois, através do WhatsApp, sua mãe o procurou. “Ela disse que não entendia o que havia acontecido e eu, mais calmo, falei dos meus medos”, lembra. Aquela foi a primeira vez que eles conversaram sobre a sua sexualidade – assunto que permanecia um tabu para a família. “Então, houve uma reconciliação de uma mãe que não quer perder o contato com o seu filho. De um filho que quer estar próximo dos pais”, orgulha-se.

No desenrolar dos fatos, o tema eleições não voltou. “Apesar de um período de tensão e de ainda sentir medo, é algo que me deixou feliz. De uma certa maneira, me conforta ter uma relação harmônica com minha família e ter com eles conversas francas sobre nós, sobre a vida. Quando a gente sabe que tem esse apoio, proteção, afeto, intimidade, isso alivia muito, ajuda a enfrentar esse momento”, assegura.

Política em família

Há quem diga que até mesmo a tradicional noite de Natal em família esteja ameaçada diante do clima de polarização no país – algo que, de certa forma, não surpreende a cientista política Érica Anita Baptista. Para ela, “as redes sociais online têm uma dinâmica muito próxima das ‘off-line’, porém, nas virtuais conseguimos alcançar mais pessoas e ‘perdemos a vergonha’, o que facilita o embate entre as pessoas”, pontua.

A grande questão, observa a pesquisadora, é que as redes potencializam a formação de bolhas ideológicas – através de escolhas pessoais ou mesmo por ação dos algoritmos. “Por mais que o usuário discuta, ocasionalmente, com os seus opositores, na maior parte das vezes, ele está reforçando seus argumentos com aqueles que têm posicionamentos parecidos com o seu”.

Dessa maneira, as redes entregam um cardápio de informações – nem sempre verificadas – que reforçam as crenças do usuário, o que promove uma certa radicalização de seus posicionamentos, a medida que são constantemente reafirmados. É uma lógica que se quebra justamente nos “grupos de WhatsApp da família”, como observa Érica.

Como muitas pessoas estão nesses canais de comunicação apenas para cumprir um protocolo social – e não necessariamente por afinidades políticas –, é neste lugar que o debate se torna mais acalorado, pois ali opiniões divergentes se chocam.

Para ela, as pessoas muitas vezes desconhecem os candidatos e precisam escolher entre eles. Assim, se dividem em preferências, buscam alguma informação para defender seu ponto de vista, “como se fosse uma disputa de futebol”. “As brigas, em muitos casos, surgem porque não estamos discutindo as melhores propostas, mas porque não queremos desperdiçar o voto”, elabora.

Érica sustenta que há uma herança positiva em todo esse embate: “as pessoas estão percebendo a importância de discutir política”.

 

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