TRILHAS

O despertar pela natureza 

Belo-horizontinos se rendem às aventuras, desafios e prazeres do hiking e do trekking

Por Alex Bessas
Publicado em 20 de maio de 2017 | 03:00
 
 
 
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Caminhar quilômetros e quilômetros a pé em trilhas. Travessias difíceis, trechos escorregadios, alturas que causam vertigem. Por metro quadrado, a possibilidade de encontrar insetos ou mesmo animais selvagens e peçonhentos é real. Não bastasse, joelhos e costas reclamam o esforço, que ainda tem a adição de uma mochila, responsável pela sobrevivência. Mas nenhum desses obstáculos assusta os adeptos do hiking e do trekking – modalidades distintas, mas que têm em comum o propósito da caminhada em contato direto com matas, campos, florestas, cerrados.

Diga-se até que, em vez de desmotivar, as dificuldades enfrentadas só fazem aumentar a vontade de vencer cada obstáculo. A recompensa: a autossuperação, o livrar-se momentaneamente da hiperconectividade da vida moderna, o contato com a natureza em seu estado mais puro e até mesmo, para alguns, um encontro com o sagrado. A professora de Yoga Ana Virgínia Azevedo, 44, por exemplo, gosta das duas modalidades – e fez delas um estilo de vida. “Há dois anos, fiz uma caminhada bem leve, com guia, na região de Ipoema (distrito de Itabira). E algo acordou em mim”, lembra. Estar na natureza em seu estado mais primitivo era a motivação inicial. “É um processo de desintoxicação dos excessos da cidade grande”.

Com o tempo, as razões se interiorizaram. Hoje, o que a move é a auto-superação. “Ao me aventurar por trilhas maiores, senti dores no joelho, mas, na verdade, isso acabou se tornando o meu desafio pessoal”, diz ela, que atualmente faz entre um e dois trajetos por mês.

Para Ana, uma experiência marcante foi a travessia entre Petrópolis e Teresópolis. Com cerca de 32 km, o trajeto íngreme foi percorrido em três dias. “No segundo, pegamos muita chuva, passamos frio, a situação se complicou... Mas, olha, é muito gostoso”, assegura.Aliás, para ela, “uma trilha muito fácil, de ir só para curtir”, não é, definitivamente, o seu propósito. “O que quero é ter uma experiência nova, é conhecer lugares novos”, sustenta.

O professor de educação física Fernando Costa Vilar, 34, também não saiu imune de sua primeira experiência com trilhas, em dezembro de 2015. “Aquela ligação com a natureza despertou algo em mim e tive a certeza de que despertaria também em outras pessoas”, recorda.

Em março de 2016, reuniu 18 amigos para uma segunda expedição. Resolveu fazer disso, então, seu ofício, e fundou, juntamente com o amigo e colega de formação, Roberto de Oliveira, o Trilhas das Gerais. Em setembro do mesmo ano, reuniu um grupo de 30 pessoas para sua primeira aventura como profissional.

Hoje, Fernando se auto-intitula um guia de aventuras. Neste domingo (21), não por acaso, vai liderar 46 pessoas numa travessia entre Lavras Novas e Chapada, um subdistrito de Ouro Preto. O hiking, também chamado de bate-volta, será feito em um dia: em cerca de seis horas e meia, o grupo percorrerá os nove quilômetros da trilha.

O professor de educação física já levou mais de 200 pessoas para percorrer hikings e trekkings em Minas e também em outros Estados, como Rio de Janeiro e Espírito Santo. E, para ele, é muito nítido como, em um ambiente adverso, as pessoas mais diferentes tendem a ser solidárias entre si. Aliás, o convívio com grupos de exploradores é uma vivência gratificante também para Ana Virgínia. “Na primeira vez que senti o joelho, foi impressionante como pessoas que sequer conhecia me acolheram e ajudaram”, lembra, agradecida.

Travessias de si

A escolha das palavras muito diz da vivência destes aventureiros. Se Vilar usa o verbo “despertar” para descrever o efeito das práticas de hiking e trekking em sua vida e Ana Virgínia opta pela expressão “acordar”, há nestas escolhas algo que insinua o impacto das travessias nas suas vidas.

Não à toa, João Guimarães Rosa usa a ideia da jornada como alegoria em sua obra-prima, “Grande Sertão: Veredas”. A trajetória de Riobaldo e seu bando, aliás, inspirou a concepção do projeto “Caminhos do Sertão”, que neste ano chega à sua quarta edição em julho. Guidyon Augusto, um dos organizadores, descreve a experiência como “uma jornada sócio-eco-literária" e lembra que muitos candidatos ao percurso advêm de grandes centros urbanos. A caminhada de nove dias percorre 178 km e alinha “estudos literários, geográficos e históricos, tanto da região, quanto da literatura rosiana”, explica Augusto.

Hiking x trekking
 
O hiking pode ser entendido como uma caminhada de menor duração, um circuito bate-volta, muito comum em parques. Assemelha-se muito a um passeio contemplativo com compromisso de voltar ao ponto inicial no mesmo dia. Já o trekking são percursos maiores, que implicam em dormir fora de casa em algum momento do percurso. Nesses casos, é necessário que os praticantes estejam preparados para uma atividade física maior
 
Travessias que mudam vidas
 
Assim como a professora de yoga Ana Virgínia Azevedo, outra Ana também vê, no hiking e trekking, a fuga necessária de um cotidiano hiper-conectado. A personal trainer Ana Carolina, 26, diz estar habituada a atravessar trilhas e visitar cachoeiras desde criança. Mas foi só na juventude que a prática se tornou mais presente. “Tento ir a cachoeiras sempre. Se não for, fico mais ansiosa durante toda semana. É algo que não sei explicar, mas, com certeza, faz muita diferença”, expõe. Mas não, não se trata apenas de ir a quedas d’água: fazer todo percurso é essencial para ter uma experiência plena. “Chegar a uma cachoeira em que o carro consegue parar na porta não tem a mesma graça, fica faltando algo”. 
 
Para Ana Carolina, “chegar até uma cachoeira está relacionada com uma ideia de recompensa”. Talvez por isso, a experiência que narra com mais entusiasmo é a visita à cachoeira da Fumacinha, na Chapada Diamantina (BA). “É a coisa mais incrível que já vi”, sentencia. 
 
No percurso de ida e volta, a personal precisou caminhar por cerca de sete horas. “Todo mundo indica fazer em dois dias, mas eu estava no final da viagem e não tinha grana para pagar o guia por mais de um”, lembra. Acompanhada apenas de um guia, ela se decidiu a fazer o trajeto. “Tenho um problema na coluna, sinto dores nas costas, mas quando vi que era possível, fui. A trilha tinha muita parte de escalada, por isso foi a mais difícil. Não acreditei que ia conseguir concluir. No final, foi a água mais gelada que já entrei. Mas, ao mesmo tempo, a mais gratificante”, diz. “Não fosse a dificuldade, não seria tão maravilhoso”, conclui.
 
Natureza vista de cima
 
Na família de Ana Carolina, o gosto pelas trilhas na selva parece capricho genético. Seu irmão, Paulo Tadeu Gonçalves, 31, é prova disso. Até junho de 2016, ele se dedicava à profissão de formação, engenheiro, atuando em uma mineradora multinacional. Quando foi transferido para o Brasil, ao se deparar outra vez com o cerrado, viu crescer em si o desejo por uma nova vida.
“O que me motivou foi a riqueza do contato puro, sem nenhum artifício com a natureza e a fuga da agitação da cidade, dessa energia pesada que encontramos nas metrópoles”, indica ele, que há quase um ano se dedica a fazer trilhas sistematicamente, registrando os destinos através de filmagens aéreas com drones.
 
Hoje nômade, o rapaz se identifica como produtor de conteúdo. Ele trabalha em um projeto que será lançado na web ainda em maio. Trata-se da Tico Tico TV, mídia dedicada a filmar a natureza.
 
“Atualmente, alterno minha rotina entre capturar imagens e trabalhar esse conteúdo”, explica.
Nas travessias, Paulo Tadeu muitas vezes precisa ficar acampado para cumprir os trajetos. “Hoje, por conta do projeto, o máximo que fico são 60 dias, porque preciso de uma base com energia elétrica para carregar os equipamentos”, lembra. Por conta da rotina de trabalho, ele fica entre um e cinco dias em campings. Com o material capturado, volta para sua base. “Agora, minha ilha de trabalho está em Milho Verde (região do Alto Jequitinhonha, em Minas Gerais)”.
 
Situações adversas estão propensas a acontecer. O atolamento de um carro, uma crise alérgica e até ficar perdido em trilhas estão entre as memórias do produtor. Mas nada disso foi suficiente para abalar sua vontade de continuar a caminhada, assegura.
 
Ainda trabalhando na pré-produção da Tico Tico TV, Paulo já filmou rios, vales e cachoeiras em Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Rio de Janeiro. A estreia do projeto será com os cânions do Rio São Francisco, entre os Estados da Bahia e Alagoas. “Ainda neste ano quero filmar a região de Tucumán (Norte da Argentina), Chapada dos Veadeiros (GO) e Amazônia”, revela.
 
Busca por um novo horizonte
 
Corretor de seguros por sete anos, Rodrigo Alves de Oliveira, 39, viu sua vida mudar depois de ser atropelado por um motorista alcoolizado. O acidente lhe custou um ano em cadeira de rodas. Foi nesse período que ele decidiu mudar de vida e trocar Belo Horizonte pela Serra do Cipó.
 
É verdade que, mesmo enquanto vivia na capital mineira, o ex-corretor de seguros já possuia vínculos com a região onde hoje mora. Sua família já sabia: em qualquer feriado, era para lá que Oliveira ia. O acidente acentuou o desejo de explorar a região da Serra do Cipó. “Larguei tudo. Peguei o carro e vim para cá. E, então, eu vi que não precisava de muito para ser feliz, que o dinheiro não podia guiar minha vida”. 
 
O ex-corretor se orgulha de ter folgado o nó da gravata – como canta Gilberto Gil –, mas precisou atar ainda mais os dos cadarços para, então, “falar com Deus”. É assim que o trilheiro descreve a experiência que todos os dias o extasia. No começo, ele contou com a hospitalidade e simpatia dos nativos. “Eles que me acolhiam em casa. Não tinha nem onde dormir”. Trabalhando em pousadas e como garçom, começou a se dar conta da demanda por guias locais. Como nunca deixou de explorar a região, começou a organizar expedições. 
 
Com o tempo, Oliveira foi se tornando referência. Até que decidiu empreender e fundou a Trilhas do Cipó, empresa em que trabalha ao lado da esposa e de dois nativos. Para ele, guiar grupos de pessoas pelas trilhas da Serra do Cipó é dividir uma experiência com o sagrado. “Vêm pessoas que nunca fizeram nada parecido, que andam 10 km, ficam cansados, mas também apaixonados diante dessa imensidão divina”.
 
O guia nunca esqueceu o carinho que recebeu da população local. Por isso, os passeios organizados por ele incluem almoço e descanso na casa de nativos. Assim, acredita ser capaz de demonstrar seu agradecimento, além de colaborar para a economia da cidade, e, por fim, consegue aproximar o visitante da acolhedora cultura local. “A comida no fogão à lenha e a boa prosa são revigorantes. Não vemos a hora passar quando estamos com eles”, diz.
 
Crianças, jovens e idosos
 
Entre os interessados em participar das trilhas, há desde jovens, famílias com crianças e até septuagenários. Atento a isso, o guia Fernando Vilar qualifica os trajetos de acordo com graus de dificuldade técnica e de esforço físico. Assim, é possível avaliar o nível de preparo necessário para cumprir o trecho proposto. “Fizemos uma trilha em Macacos, são 6 km em uma estrada que não demanda muita técnica. Este percurso avaliamos com nível de técnico 2 e nível físico 2. Uma senhora de 70 anos conseguiu realizar a caminhada”, conta.
 
“Já o Pico da Bandeira, na Serra do Caparaó, na divisa entre Minas e Espírito Santo, avaliamos com grau 4 de técnica e grau 3 de físico”,explica. “Este é um trajeto muito interessante. Saímos às 23h, subimos a montanha e chegamos ao topo às 5h”, comenta. Mas todo esforço tem sua justificativa: “ao chegar lá, assistimos ao nascer do sol. Algo mágico, não dá pra explicar”, garante. Essa travessia, conta Fernando, exige equipamentos térmicos, já que as temperaturas são negativas. Para fazer uma trilha segura, cuidados são indispensáveis. Confira ao lado.
 
Confira abaixo algumas dicas de trilheiros para não ser pego de surpresa:
 
Cuidado com os pés  
Gerente da loja de equipamentos Trilhas de Minas, Dante Anastasia, 44, recomenda o uso de bota impermeável (em média, R$ 250). “Elas protegem calcanhares de pedras e ataques de bichos”. Recomenda, ainda, que o calçado não seja usado pela primeira vez na trilha. “Tem que ir se adaptando”. Cuidados também para escolher meias. O ideal é que sejam térmicas e capazes de realizar controle de umidade (cerca de R$ 70). 
 
Protegendo a pele  
A calça deve ser de poliamida (preço médio de R$ 150). O tecido é de secagem rápida, leve e protege a epiderme dos raios UVs, explica Anastasia. Quanto à camisa, recomenda-se que seja de manga longa e proteja contra raios solares (aproximadamente, R$ 80). Se o percurso inclui temperaturas mais amenas – mas não rigorosamente frias –, vale usar jaquetas térmicas corta-vento (entre R$ 139 e R$ 299). Na cabeça, bandana com proteção UV (R$ 35, em média), boné legionário ou chapéu australiano (cerca de R$ 60). Filtro solar e repelente também são indispensáveis.
 
Mochila  
O ideal são as mochilas ataque, preferencialmente com proteção contra chuva. Para trilhas de um dia, as de 28 l são suficientes (entre R$ 175 e R$ 410). Anastasia lembra que é importante se informar antes de comprar. Uma economia impensada pode custar caro à aventura, assegura.
 
Hidratação constante
O trilheiro sugere o uso de refil de camelbak – que pode ser associado à mochila – para portar água. O reservatório com capacidade para 2 l custa entre R$ 59 e R$ 259. “Eu costumo sair com a água congelada, assim, vai descongelando durante o percurso e consigo tê-la gelada por oito horas”, aconselha. Com preço pouco superior a R$ 10, o purificador de água Clorin é sempre recomendado pelos profissionais. Vilar lembra que sempre leva o produto para trilhas maiores.
 
App
Normalmente, o trilheiro fica desconectado durante o percurso. Mas convém levar o smartphone, pois aplicativos de geolocalização, como o WikiLoc (indicado pelo trilheiro Paulo Tadeu), guardam mapas offline, evitando que o viajante se perca.
 
Nas trilhas longas
Para o trekking, é essencial levar itens como a barraca com proteção contra chuva (custa até R$ 500 para 1 pessoa); a lanterna de cabeça (entre R$ 40 e R$ 90); a mochila ataque deve ser de mais de 30 l, “mas que nunca deve pesar mais que 10% do peso de quem for carregá-la”, comenta Anastasia. Fogareiro (R$ 170), gás portátil (R$ 22) e jogo de panelas e talheres também são recomendados. Vale lembrar, “o critério é sempre menos peso e volume”, informa Anastasia.
 
Neste sentido, destaque para as toalhas super absorventes (cerca de R$ 35): eficientes na secagem, ocupam pouco espaço. Isolantes térmicos e sacos de dormir são indispensáveis. “É preciso ficar atento ao clima local. Já peguei sete graus negativos! Sem equipamento apropriado, teria tido hipotermia”, lembra Anastasia. Também para se proteger do frio, a jaqueta anarok 3 em 1 (entre R$ 510 e R$ 840) completa o vestuário.
 
Preparo
Além de equipamentos e indumentária, o trilheiro deve estar atento ao condicionamento físico. Exercícios de musculação, aeróbica, ciclismo e caminhadas ajudam na preparação. Ana Virgínia também lembra da importância do alongamento, que evita cansaço excessivo. “Neste sentido, a yoga me ajuda muito”, diz.
 

 

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