Realidade

O lixo nosso de cada dia

Convidados a acumular resíduos por alguns dias com o objetivo de despertar uma reflexão mais cuidadosa sobre o lixo produzido em suas casas, moradores de BH repensam seus estilos de vida e sua responsabilidade com o descarte

Por Alex Bessas
Publicado em 10 de junho de 2017 | 03:00
 
 
 
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Nos mais diversos lares, em todo o Brasil, uma rotina se repete: seja morando sozinho, em família ou nas chamadas repúblicas de amigos, todos os dias moradores deixam cerca de 160 mil toneladas de lixo para serem recolhidas nas ruas, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Levado da porta para fora, o lixo não parece problema. Aliás, parece problema dos outros. Assim, cotidianamente, deixa-se de olhar para o que os resíduos gerados do café da manhã ao jantar dizem sobre nós – e como se integram maleficamente ao meio ambiente.

Com o objetivo de despertar uma reflexão mais cuidadosa sobre o lixo produzido nas casas e o volume de descartes que poderia ser reaproveitado e não jogado em aterros, o Pampulha convidou quatro moradores da capital a acumularem os resíduos secos gerados ao longo de quatro dias em suas casas. Mais que um entendimento sobre os danos ambientais, a experiência levou a uma outra análise: o que seu lixo diz sobre você?

“Me choquei ao notar alguns hábitos meus que não percebia”, conta o publicitário Ramon Navarro, que também constatou não ter noção de para onde vai tanta coisa a ser descartada.

Já as amigas Eliane Sposito e Letícia Lanza perceberam que, por mais que se preocupem, ainda geram muitos resíduos em casa. Por fim, Carolina Brauer concluiu que está no caminho certo ao reaproveitar, inclusive, seu lixo orgânico.

Sinal de alerta

Navarro se mudou há cerca de seis meses para um novo apartamento, na região Centro-Sul de BH e, desde então, dedica-se a dar uma assinatura pessoal para o lugar. Com a rotina atribulada com pequenas reformas, ele não se deu conta de alguns descuidos.

“Mesmo tendo uma alimentação saudável – eu controlo meu peso, sou meio natureba –, descobri, com meu lixo, que como muita, mas muita, porcaria”, diz, apontando para as garrafas de Coca-Cola e sacos de pipoca de micro-ondas. “Até então, não havia me dado conta disso!”.

O consumo de cigarro foi outro alerta que a convivência com o lixo disparou no comunicador. “Vi que tenho fumado muito, algo que não tinha percebido”. Outro vício, como ele nomeia, é a mania por limpeza, que ficou ainda mais óbvia com a agonia em armazenar tantas coisas em casa.

A pessoalidade do lixo, aliás, se nota pelas histórias que carrega. No amontoado de coisas a serem jogadas fora, um souvenir que veio de Israel e que se quebrou ao sair da caixa da mudança. Sua vaidade também está lá, na forma de um vidrinho de sulfato de Minoxidil – um medicamento usado para impedir e retardar a perda de cabelo.

Vendo a proporção e o quão impregnado de identidade é o lixo gerado por ele, Navarro discorre uma série de observações. “É um dos grandes problemas do mundo... Para onde vai tudo isso?”, questiona ele, que atualmente não faz separação do lixo reciclável. “É um problema da humanidade, mas veja, é meu também”, conclui, olhando para o lixo acumulado à sua frente.

Esta, na verdade, é, pelo menos, a segunda vez que Navarro se choca com os rumos do lixo. Em 2006, durante a feitura do documentário “À Margem do Corpo”, quando ainda vivia em Brasília, filmou em um lixão a céu aberto. A diferença é que, dessa vez, se viu no meio dessa cadeia. A junção das duas experiências o deixou ainda mais perplexo. “Não tem mais lugar para isso tudo!”. Das ponderações feitas por Navarro, uma delas tende a transformar sua relação com os detritos. “Ainda não conheço nenhuma iniciativa (que possa dar outros destinos para o lixo). Gostaria de conhecer. Alguém está preocupado com isso?”.

Lixo Zero

Diante das dúvidas de Navarro e da maioria da população, a norte-americana Lauren Singer, 26, tornou-se referência de um novo estilo de vida. Formada em estudos ambientais, ela adotou uma política particular e radical na sua lida diária com o lixo na cidade onde mora, Nova York. Na verdade, Lauren decidiu abolir o lixo de sua vida. No seu blog, Trash is for Tossers (Lixo é Para Jogadores, em tradução livre), ela relata sua mudança de hábitos e receitas – inclusive de pastas de dentes, xampu e desodorantes.

E para quem pensa que o estilo de vida não resistiria ao cotidiano urbano, Lauren já está há cinco anos sem produzir nenhum tipo de resíduo que não seja compostável ou reciclável. Sabendo que a iniciativa ganhava a agenda de outras pessoas mundo afora, inaugurou, em maio deste ano, a Package Free, uma espécie de loja que pode facilitar a vida de quem queira aderir à causa.

No Brasil, a proposta de lixo zero encontrou eco na iniciativa da designer Cristal Muniz. A exemplo de Lauren, a brasileira de Florianópolis transformou seu dia a dia e também criou seu blog, o “Um Ano Sem Lixo”. Nele, conta sua experiência e dá dicas de como levar sempre seu copo de vidro consigo, não comprar nada empacotado (grãos, por exemplo, só a granel, e levados em sua própria ecobag) e produzir ela mesma seus próprios produtos de higiene pessoal. O lixo orgânico vai para a compostagem. Entre as propostas radicais de Lauren e Cristal e o questionamento de Navarro, todavia, muitas outras soluções se apresentam.

Upcycling vira um propósito

Estudantes de arquitetura, Letícia Lanza, 23, e Elaine Sposito, 30, dividem apartamento a poucos metros do publicitário Ramon Navarro, citado no início desta reportagem. Com elas, moram outras duas pessoas recém-chegadas, além de três gatos que são, diga-se, os xodós da casa. As estudantes, também a convite do Pampulha, acolheram a ideia de deixar acumular o lixo gerado nos últimos dias. “Na verdade, a gente já é bem consciente quanto a essa questão. Mas o mais chocante da experiência foi observar, ainda assim, a quantidade de lixo que a gente gera”, aponta Eliane, lembrando que, antes do experimento, não se dava conta do volume, já que, diariamente, despachava os resíduos para coleta.

“Temos duas caixas, uma de lixo seco e uma de molhado”, explica Eliane. “A gente separa o que é pedido pela administração do prédio, mas existem muitas coisas que poderiam ser recicladas e que a gente descarta”, reconhece a estudante.

Letícia, aliás, lembra que a reciclagem é hábito entre elas, que praticam o upcycling – prática que transforma e dá utilidade a algo sem valor comercial que seria descartado. Caixotes de sacolão, que iriam para o lixo, viraram as lixeiras da casa. Além disso, elas fizeram dos restos de uma estante de cozinha um pequeno aparador com divisória para garrafas de vinho. Dois paletes, que seriam abandonados em uma construção, viraram a mesa da sala. 

Já a mesa de estudos é feita de uma tábua que também iria para o lixo. “A gente precisava de móveis e foi se apropriando do que encontrava”, pontua Letícia.

Depois da experiência, Elaine e Letícia estranharam mesmo foi a mudança de hábitos da casa com a chegada dos dois novos moradores. “A gente não bebe leite, por exemplo, e agora tem muito leite aqui”, comenta Elaine, apontando as caixas.

“Na verdade, nós duas consumimos pouquíssimos alimentos industrializados e, quando fazemos feira, a gente não faz isso de ficar empacotando cada item não”.

Vinda de Sete Lagoas, Letícia lembra que o hábito de separar lixo seco e molhado veio com a família, sendo reforçado na escola, ainda no ensino médio. Elaine defende ainda um ponto de vista mais utópico. Para ela, a questão do lixo é atravessada pela vontade de “mudar as coisas”. O cuidado, aliás, é acompanhado de outras iniciativas: seus gatos são adotados, sua alimentação não é industrializada. “Eu só estou procurando ser uma pessoa melhor”, diz.

Reaproveitar

Também participante do experimento de acumular seus resíduos, a educadora musical Carolina Brauer, 38, chegou ao final apenas com conteúdo reciclável, que entregaria para a coleta seletiva na última sexta-feira, como faz todas as semanas. Hoje, os detritos gerados por Carolina e sua família se resumem ao lixo sanitário e aos jornais que usa para recolher os dejetos dos seus gatos. Se o dito popular afirma que a grama do vizinho é sempre mais verde, a realidade não se aplica para ela, que se orgulha de descartar o menor volume de lixo possível.

Assim como Eliane e Letícia, Carolina trouxe de casa o hábito de separar o lixo doméstico. Mas foi com a maternidade, ao se tornar chefe de casa, que passou a ver a questão com mais acuidade. “Minha mãe já fazia a separação e é algo que eu continuo fazendo”, diz. Com o nascimento de sua filha, há nove anos, Carolina se atentou para a quantidade de lixo que gerava. “Foi quando notei que muito daquilo podia virar brinquedo, que era algo que podia me ligar à minha filha”, recorda. Com a iniciativa, potes de iogurtes, garrafas de vidro e outros descartáveis tornavam-se diversão. “Foi uma forma lúdica que achei para falar sobre sustentabilidade, além de contribuir para o desenvolvimento da imaginação e coordenação motora da criança”.

A proposta deu tão certo que, mais tarde, as ideias foram levadas para as aulas de música. “Comecei a fazer cenários com objetos que estão no cotidiano das crianças e, depois, passamos a fazer instrumentos musicais. Cheguei a fazer um piano de garrafas de vidro”, comenta. Assim, “passei a aliar transversalmente aulas de música e educação ambiental”, analisa. Ao reaproveitar materiais, Carolina acredita que não apenas dialogava com aquelas crianças, mas também com suas famílias.

Compostagem

Além de praticar upcycling ao fazer brinquedos e instrumentos musicais com objetos que seriam descartados, de participar da coleta seletiva e de encaminhar produtos para reciclagem, as cascas de alimentos e papel de pão começaram a aborrecer Carolina. Foi neste contexto que ela descobriu a compostagem doméstica: tecnologia que transforma o lixo orgânico, a partir da ação de minhocas, em adubo de boa qualidade. 

Há cinco anos a técnica faz parte do seu dia a dia. “Moro em um apartamento e faço a compostagem na cozinha. Não tem mau cheiro e uso o húmus da minhoca para adubar minhas plantas”, conta. 

Para explicar o caminho que a levou até a composteira, Carolina teoriza. “Esse processo em que eu já estava inserida, de transformação e ressignificação, é dialético. Transformar o lixo acabou me transformando também”.

Reuso como negócio

O hábito de reaproveitar velharias, encalhes e peças que, normalmente, iriam para o lixo é característica comum entre Daniel Correa e Mariana Falcão, André Cota e Henrique Pirani. Aliás, os quatro arquitetos e designers, chegam a tirar objetos de caçambas para transformá-los em um mobiliário útil e diferenciado.

Do upcycling caseiro, a prática se converteu em um trabalho profissional. “Resolvemos juntar as forças, dividir os escritórios e montar uma loja física, hoje, além dos garimpos e objetos ressignificados, produzimos mobiliários com design autoral!”, explica Daniel Correa, 37, acerca da fundação do Coletivo Au.

Para ele, o entendimento do que é lixo vem, na maioria das vezes, de uma leitura equivocada. “O que fazemos é olhar para cada um deles de forma específica levando em consideração o que ele pode ainda ser útil, funcionalmente ou decorativamente”, diz. “Daí o termo de 'garimpo criativo'!”, completa. O importante, para ele, é ter um olhar apurado. Assim, "conseguimos identificar potencialidades e possibilidades diversas em móveis antigos e até pedaços de resíduos que iriam para o lixo”, diz. Mas o reuso não é exclusividade do grupo. “Muitos clientes fazem questão de nos mostrar em fotos suas intervenções caseiras, reaproveitando caixotes, mesas antigas ou até mesmo outros objetos que virariam sucata”, expõe.

Pensando pelo viés socioambiental, Correa defende que “o upcycling poderá contribuir de alguma forma, porém sozinha ela não fará diferença”. O arquiteto defende uma mudança de hábitos de consumo e de descarte. “São os cinco "R"s da sustentabilidade: devemos Reduzir nosso consumo; Reutilizar e Reciclar nossos objetos; Repensar nossas atitudes; e Recusar adquirir bens que não utilizem destes conceitos”, pontua.

A frente do Coletivo Au (sigla em referência ao elemento ouro na tabela periódica), o grupo mira exemplos internacionais. Entre os exemplos, cita o centro comercial inaugurado neste ano, na Suécia, que incorpora o conceito de upcycle. “Desde alimentos, vestuário e até móveis”, detalha Correa. “Por que não pensarmos nisso por aqui?”, instiga.

Análises

Para especialistas, a solução para a situação do lixo no país e para a conscientização da população em relação ao tema passa pela correção de erros estruturais. “Os programas de reciclagem não são adequados à realidade”, diz o biólogo Ricardo Motta Pinto Coelho, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG. “Falta a premissa do negócio, inserir essa indústria na cadeia produtiva. Precisamos parar de ver a reciclagem por um viés filantrópico. Reciclar depende de alta tecnologia, de pesquisa científica, de atividade empresarial”, decreta. Para ele, “o país já podia ter superado o problema do desemprego se os governos se preocupassem com os arranjos produtivos locais”.

Já para Antônio Teixeira de Matos, professor do departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental, o que falta são incentivos. “O material orgânico não deveria ir para aterros sanitários. Se colocar na ponta do lápis, o lixo orgânico tem mais valor”, diz. Para Matos, a questão não é legislativa. “A sociedade precisa de algum incentivo para separar seu lixo”. No entanto, ressalta, “é fundamental que o equipamento público esteja pronto para realizar a coleta seletiva”.

Resíduos específicos

Quanto de eletrônicos estragados, medicamentos vencidos, cartões de visitas que nunca serão acionados guardamos ao longo da vida? Vivendo 15 anos no mesmo apartamento, os quatro últimos junto a seu companheiro, a produtora de conteúdo Raquel Sodré, 32, sentiu na pele a experiência de descobrir o quanto se acumula ao longo dos anos quando, em janeiro, preparava sua mudança para Madri. 

De malas prontas para Europa, Raquel decidiu alugar o apartamento mobiliado, para facilitar a mudança. “Quando conseguimos inquilinas, pensei: “Ótimo, vai ser só esvaziar os armários. Mal sabia que os armários não eram ‘só’!”, diz.

Apesar de ter cogitado até por fogo em tudo, ela se preocupou em dar o rumo certo a cada tipo de lixo. “Algumas coisas foram bem óbvias de destinar”, comenta, citando vidros e pilhas. “Mas alguns tipos de descarte foram mais difíceis”, indica, citando o lixo eletrônico e medicamentos fora da validade. “Nesse processo, descobri que não era a única a ter essa dificuldade”.

Da experiência, surgiu o post “Onde Fazer Doações em BH”, do blog “Que Ideia”, mantido por Raquel. Assim, buscou ampliar o debate acerca dos rumos do lixo doméstico. “Nós ainda achamos que vivemos em um Eldorado de recursos infinitos”, critica. 

Para ela, aliás, o debate é insipiente não só no Brasil. “Aqui (em Madri), o governo municipal tem um programa de reciclagem muito mais eficiente do que no Brasil — o que é ótimo! Por outro lado, é simplesmente inacreditável o que as pessoas jogam fora!”, aponta. “Na minha porta passa, todos os dias, um caminhão lotado de coisas que foram descartadas e ainda poderiam ser reaproveitadas. Isso é o resultado da ação de várias pessoas que, sistematicamente, acham que suas ações não têm impacto”.

BH a caminho

Em BH, alguns passos devem ser dados no sentido de aquecer a cadeia de reciclagem. O Serviço de Limpeza Urbana de BH (SLU) informou, por exemplo, que iniciou trabalhos para a implantação de uma unidade de triagem de vidro. Com a iniciativa, o vidro será separado por cor e os cooperados terão ganhos com o aumento do valor da venda. A entidade também destacou o plano de viabilizar, para os próximos anos, com apoio do Governo Estadual, a implantação de indústrias recicladoras.

Hoje, a SLU destaca duas iniciativas locais para a coleta seletiva. Presente em 36 bairros, com o sistema “porta a porta”, os próprios moradores separam os materiais recicláveis. A coleta é feita uma vez por semana e tem abrangência de 125 mil domicílios. Já o esquema “ponto a ponto” conta com a entrega voluntária de recicláveis em um dos 82 conjuntos de coletores para papel, metal, plástico e vidro, dispostos nas nove regionais da cidade.

Filmes refletem sobre lixo e consumo

Estamira Documentário de 2004 acompanha Estamira, que vivia em Jardim Gramacho, hoje desativado.

Lixo Extraordinário Também filmado no aterro fluminense, registra o trabalho do artista plástico Vik Muniz.

A História das Coisas Com 20 minutos, o documentário reflete sobre o consumo desenfreado de bens materiais.

Wall-e A animação narra a saga de um robô que procura vida em um planeta Terra devastado pelo lixo.

 

Para onde ir?

Eletrônicos Duas empresas realizam o manejo de lixo eletrônico em BH: a E-mile e a BH Recicla.

Pilhas e baterias O descarte de pilhas e baterias pode ser feito em algumas agências dos Correios, em supermercados de redes como Extra, Verdemar e Carrefour. 

Medicamentos Se fora da data de validade, os medicamentos podem ser descartados em algumas unidades da rede Droga Raia ou no Life Center.

Vidros Algumas empresas recebem as embalagens de produtos por eles vendidos, como O Boticário. Além de pilhas e baterias, a Leroy Merlin recebe lâmpadas. Outros recipientes podem ser doados para a Asmare.

Móveis e eletrodomésticos O Núcleo Assistencial Caminhos para Jesus realiza, com seus atendidos, oficinas de conserto de aparelhos quebrados. Depois, estes itens podem ser usados pela instituição ou vendidos para arrecadar fundos.

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