Professora da Unicamp e historiadora, Maria Clementina Pereira Cunha lança o e-book “Não Tá Sopa: Sambas e Sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930”, em que revê os primórdios do gênero. A obra, resultado de mais de dez anos de pesquisa, desfaz algumas ideias cristalizadas sobre as origens do ritmo. Nesta entrevista, ela comenta o conteúdo de “Não Tá Sopa” e os caminhos de sua pesquisa.
De onde vem seu interesse pela música popular brasileira e por esse período histórico compreendido no e-book “Não Tá Sopa”?
Eu pesquiso esse período há muito tempo, sou especialista no Brasil República. A música popular é um interesse bastante antigo também. Publiquei um livro sobre o Carnaval, “Ecos da Folia”. Sou carioca, cresci no Rio, numa casa que tinha um boteco em frente, perto do morro Santa Marta. Então, cresci ouvindo rodas de samba. O “Ecos da Folia” me deixou uma série de indagações a respeito do samba. A gente tem um grupo de pesquisa na Unicamp, uma equipe muito grande trabalhando comigo, e vislumbrei o caminho para desfazer aquelas indagações que trazia desde o livro sobre o Carnaval. Sempre achei a bibliografia sobre o samba profundamente insatisfatória, não passa de um limite que é repetir o que os memorialistas dos anos 40 e 50 contam, ou do que os próprios sambistas diziam a seu respeito quando estavam construindo uma narrativa para sua história.
Este ano se celebra o centenário do samba, tomando como marco o registro de “Pelo Telefone”, mas o “Não Tá Sopa” recua no tempo até o século XIX. O que te levou a estabelecer o ano de 1890 como ponto inicial de sua pesquisa?
Uma coisa que tentei desconstruir é uma certa ideia do samba como coisa unívoca, a música que os negros, descendentes de escravos, em um dado momento criaram. Quis mostrar que essa ideia de homogeneidade é tosca. Elegi dois grupos mais conhecidos da região que chamavam de Pequena África: os sambistas baianos, ou descendentes de baianos, que moravam ali perto do cais do porto, no Rio, e um outro grupo, que inclui Ismael Silva, e que se caracterizava como a malandragem carioca. O grupo baiano foi em massa para o Rio entre o fim do século XIX e o início do século XX, num processo de migração religiosa. São os terreiros de candomblé que vão para o Rio, e é em volta deles que esses sambistas baianos se articulam. Eles têm um padrão de comportamento e musical bem diferente do grupo que morava do outro lado do Canal do Mangue, formado por gente que, quando criança, viveu na rua, passou mais necessidades, tinha que batalhar. O grupo da Bahia tinha uma hierarquia, tinha a coisa de comunidade estruturada em termos de religião. O grupo carioca, não. Tinha a coisa de roubar samba um do outro, de se envolver em episódios de violência com frequência. Esses dois grupos só vão se encontrar lá nos anos 40, através da indústria fonográfica, que começa a vender como uma coisa única.
O livro desmistifica muito do que se diz sobre as origens do samba, como, por exemplo, relativiza essa ideia de que sambistas eram perseguidos pela polícia. Que outros mitos cristalizados sobre as origens do samba a obra desfaz?
Levantei todos os registros das delegacias dessa região conhecida como Pequena África, do cais do porto até o Estácio de Sá. Essas delegacias me davam uma série de informações. Os sambistas apareciam, mas tinha coisas sobre o espaço urbano. A primeira coisa que fiz foi construir um mapa dessa região. A segunda foi levantar um banco de dados extenso da polícia. Descobri que os sambistas estão presentes nas fichas criminais, alguns foram presos, mas numa quantidade muito pequena, proporcionalmente irrelevante. Outra coisa que levantei sobre as pessoas que frequentavam espaços de sociabilidade é que nesse meio dos sambistas existia uma presença bem considerável de imigrantes italianos, portugueses. Assim, o mito de que o sambista era perseguido ficou frágil, a ideia de que o samba é essencialmente um ritmo brasileiro ficou arranhada, a ideia de que os sambistas eram todos negros, também, a despeito de a maioria, sim, ser negra e pobre. Existia uma rede de convivência que a gente não pode ignorar, com a presença de Noel Rosa, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos. Tentei pegar o samba não como uma linguagem de resistência, por exemplo, embora muitas vezes tenha sido, e sim como uma linguagem. O samba era feito pela população pobre do Rio, que era majoritariamente negra, mas o horizonte daqueles sambistas não era a África. Eles não falam de cor, não falam para os outros negros. Quando começam a produzir, a aparecer, eles estão buscando sucesso, disputando um com o outro, o que é muito diferente de pretender uma marca étnica.
Quais foram os primeiros e mais importantes expoentes do samba e o que lhes garantiu essa condição?
O mais antigo deles é Sinhô. Tem também o Pixinguinha, porque naquele momento não existia a distinção entre samba e choro. E ainda o Donga, o João da Baiana e vários outros nomes importantes do lado do grupo da Bahia, como Marinho que Toca, Mestre Germano e outros. E do lado do Estácio, Ismael Silva, Baiaco, Brancura, Benedito Lacerda, Mano Elói, Bide e Marçal.
A obra disponibiliza mais de 180 imagens e cerca de 40 fonogramas. Foi muito complicado levantar esse material?
Menos do que parece, porque hoje você tem a internet. Agora, é um tempo grande para poder levantar essas coisas, selecionar, chorar pelo tanto que ficou de fora. Eu tenho uma coleção pessoal grande de discos, e tem o Instituto Moreira Salles, que tem um acervo fantástico de fonogramas de música popular.
Existia a discussão entre Donga e Ismael Silva, que defendiam, respectivamente, “Pelo Telefone” e “Se Você Jurar” como o primeiro samba. Você, pessoalmente, toma partido nessa disputa?
Ismael Silva dizia que “Pelo Telefone” não era samba, era maxixe, e, de fato, é uma música bem amaxixada mesmo, com uma sonoridade mais leve. E quando o Donga dizia que “Se Você Jurar” era uma marcha, ele também estava certo, porque era uma coisa para desfilar.
O “Não Tá Sopa” destaca que entre o final do século XIX e o início do século XX se fazia samba de muitas formas distintas. Quais são os principais elementos constituintes do samba?
Na trajetória do samba tem jongo, corima, maxixe, marcha-rancho. Essas fronteiras não são muito claras. No final do século XIX, samba não queria dizer um ritmo, mas um tipo de baile popular. Você já tinha a expressão samba, mas era outra coisa. Depois é que se torna ritmo, diferenciado do jongo, do maxixe e de outros.
Na década de 1930, até onde sua pesquisa vai, o samba se torna um símbolo nacional. Isso mudou a vida ou a postura dos sambistas da época?
A partir dali eles começam a ser mais intensamente procurados pelas gravadoras, começam a ter mais oportunidades de aparecer nos palcos, nos programas de rádio, até no cinema. Eles se tornam artistas. Até então eram boêmios, malandros, operários que de vez em quando gravavam um sucesso qualquer na voz de um terceiro. Os grupos começam a se formar, os sambistas começam a ganhar uma presença maior no cenário do Estado Novo, entra o samba orquestrado, que enaltece o país, a miscigenação, a democracia racial. Mas aqueles sambistas pioneiros ganham seu lugar ao sol também.