ARTES CÊNICAS

Precisamos falar de Gisberta 

Baseado em fatos reais, o espetáculo repassa a história da transexual brasileira assassinada em Portugal. O monólogo de Luís Lobianco chega ao CCBB na primeira semana de janeiro.

Por Patrícia Cassese
Publicado em 23 de dezembro de 2017 | 04:00
 
 
 
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O Brasil segue ocupando a pole position de um ranking aterrador: o dos países que mais matam travestis e transexuais no mundo. A cada 25 horas, uma pessoa LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis) morre. Neste 2017, alguns assassinatos ocorridos dentro deste recorte ganharam destaque nas manchetes de jornais – caso dos de Dandara ou do adolescente Itaberlly. Outros caíram no anonimato. 

Ocorrida em 2006, a morte de Gisberta Salce Junior não integra essa estatística por ter seguido um roteiro pouco convencional: aos 45 anos, a brasileira morreu após ser agredida por 14 adolescentes na cidade do Porto, em Portugal. Naquele país, o caso se tornou emblemático, mas, curiosamente, a tragédia de Gisberta segue desconhecida por muitos de seus conterrâneos.

Um corte temporal flagra o ator Luís Lobianco à procura de um texto para voltar aos palcos, seu habitat muito antes de estourar com o canal humorístico do Youtube Porta dos Fundos. Corria o mês de fevereiro de 2016, e o carioca escutava “Balada de Gisberta”, do português Pedro Abrunhosa. “Eu não sei se a noite me leva/Eu não ouço o meu grito na treva/O fim quer me buscar”, diz um trecho da letra, interpretada por Maria Bethânia. 

Instigado, embora já tivesse ouvido a canção outras vezes, Lobianco foi à cata de mais informações. E o que se desnovelou o impactou de tal maneira que nascia, ali, o embrião do espetáculo “Gisberta”, dramaturgia de Rafael Souza-Ribeiro e direção de Renato Carrera, que chega no dia 5 de janeiro à capital mineira. Sim, é um drama. Mesmo tendo seu rosto mais ligado ao riso por conta do Porta dos Fundos, Lobianco apostou suas fichas nesta “história real, humana, que mexeu muito comigo”. “E que é urgente, neste momento de muito intolerância no Brasil”, pontua. “Em Portugal, conseguiram mudar muita coisa a partir do caso dela”, lembra ele.

Antes de seguir em frente, um repasse se faz necessário. O paulistano Gisberto era o caçula de uma prole de oito que, após a morte do pai, revelou à família seu descompasso em relação ao corpo que habitava. Deixou os cabelos crescerem e assumiu a identidade de Gisberta.

Mas ao se enveredar pela transexualidade, assustou-se com as estatísticas do país e resolveu cruzar o Atlântico em busca de uma vida melhor. De início, o que encontrou por lá correspondeu às expectativas. Mas veio o diagnóstico de ser portadora do vírus da AIDS e, sem visto e trabalho, virou uma imigrante ilegal, sobrevivendo por meio da prostituição. Quando a doença já se manifestava, e sem outra fonte de renda, Gisberta acabou tendo que deixar o apartamento em que vivia e foi morar num prédio em obras, abandonado. Eis que três adolescentes, que entraram no local para grafitar, se depararam com a moça, a quem, no início, passaram a ajudar. Mas eis que os meninos, alunos de uma instituição administrada pela Igreja Católica (a Oficina de São José), resolveram repassar a história a colegas. Diante da informação da existência do “homem que tinha tetas”, um grupo de 14 jovens adentrou o local e, durante três dias, torturaram Gisberta com requintes de crueldade. No dia 22 de fevereiro, voltaram ao local e, julgando que ela estivesse morta, resolveram se livrar do corpo, jogado no fosso do prédio. 

Só que Gisberta, apesar de inconsciente, ainda estava viva – acabou morrendo por afogamento, pois o local estava cheio de água. No ano passado, quando o caso completou dez anos, a BBC lembrou a repercussão da descoberta do corpo. “O caso ganhou proporções inéditas na mídia e na sociedade portuguesas nos meses seguintes. Associações de defesa dos direitos dos homossexuais organizaram manifestações pelo país e fizeram vigília em frente ao prédio onde Gisberta fora assassinada”, diz o ator.

Montagem

Cumpre dizer que o momento em que a letra da citada música despertou a atenção de Luís Lobianco aconteceu no dia 22 de fevereiro do ano passado, ou seja, quando Portugal lembrava os dez anos do hediondo crime. O ator entrou em contato com várias ONGs lusitanas em busca de informações. “Tive muito retorno. E aí veio o momento mais delicado: chegar na família dela. Não sabia como estariam, mas as irmãs, principalmente, e as sobrinhas receberam a nossa equipe com muito carinho e confiança. Aliás, a peça só existe graças à participação delas”, registra.

Paulista, a família, aliás, foi à estreia do espetáculo, no Rio de Janeiro, a convite da produção. “Elas não conheciam a cidade e, depois do espetáculo, saímos com elas. Eu estava preocupado com a reação, mas me disseram que a peça havia finalmente feito justiça (à imagem de “Gis”, como era conhecida) e que, a partir daquele momento, a tristeza dava lugar a uma lembrança”. 

Portugal, país no qual a vida de Gis teve seu trágico desenlace, se fez presente: ainda na concepção da peça, Lobianco fez questão de percorrer os caminhos traçados pela brasileira, inclusive o prédio no qual foi assassinada. Na estreia da peça, no Brasil, não foram poucos os jornais da terrinha que o procuraram para fazer matérias. Aliás, ano passado, um memorial foi erguido no Porto, para que essa história não caia no esquecimento.

Agora, a ideia é levar o espetáculo para lá – se possível, para além de Lisboa e do Porto. Porque sim, o tema grita pertinência em tempos de recrudescimento do conservadorismo. “Existe essa reação forte, irracional, de muito ódio, que se escora no anonimato da internet. Mas, por outro lado, é um movimento sem volta, o de falar de identidade de gênero, de se colocar. E o pensamento vai ter que mudar, mesmo que seja na marra. Não dá mais para empurrar as coisas para debaixo do tapete”, brada.

Gisberta

CCBB (Praça da Liberdade, 450, Funcionários, 3431-9400). De 5 de janeiro a 5 de fevereiro, de sexta a segunda, às 20h. R$ 20 (inteira)

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