Reportagem

Pai em dose dupla 

O Dia é deles - Casais homoafetivos contam as dores e delícias da paternidade

Por Jessica Almeida
Publicado em 08 de agosto de 2015 | 03:00
 
 
 
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Aos 14 anos, César Moreira, hoje com 38, entrou para o seminário. Aos 25, se tornou padre. Aos 30, conheceu o produtor rural Henrique Maués… e Fernando, seu filho adotivo. A partir daquele encontro, começou a questionar o que faria dali pra frente: viver um amor recém-descoberto ou permanecer ordenado? Chegou a ouvir que não era necessária nenhuma ruptura, poderia levar uma vida dupla e, ao mesmo tempo, atender aos fiéis e aos chamados do coração. “Você diz que ele é seu primo, ou seu irmão”, sugeriam. Mas após alguns meses de convivência, o menino, então com menos de 2 anos, chegou de repente e o chamou de pai.

“Aquilo pra mim foi muito forte, no sentido não só de ter um laço de afinidade com aquela criança, mas para minha escolha de vida. Decidi assumir minha vida homossexual, me unindo ao Henrique na missão de criar essa criança, com todo o carinho que ela de fato merece”, lembra, emocionado, o hoje professor, frisando o quão determinante foi a existência de Fernando para a tomada da decisão. “Eu não queria esconder nada do meu filho, então achei que a postura mais coerente, tanto com ele, quanto com o Henrique, minha família e a própria Igreja Católica, era me desligar. Eu tive quase que nascer outra vez perante a sociedade, mas encarei como uma chance dada por Deus de começar de novo”, diz.

Neste domingo (9), a família Maués – Henrique e César se casaram, e este adotou o sobrenome do marido – comemora mais um Dia dos Pais. Fernando, 10, porém, não aguentou esperar e já entregou os presentes, ambos personalizados por ele mesmo: um avental escrito “mestre cuca” para o pai Kiko, como chama Henrique, e um aparelho de barbear para o pai Teko, como chama César. Assim como eles, milhares de outras famílias com dois pais devem fazer o mesmo por todo o Brasil. Afinal, de acordo com o Censo 2010 do IBGE, àquela altura, o país contabilizava mais de 60 mil casais homossexuais, dos quais 20% já teriam filhos, segundo um estudo do demógrafo Reinaldo Gregori, de São Paulo. Hoje, estes números já devem ser maiores, afinal o casamento civil gay foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2013 e tem havido cada vez mais discussão sobre os direitos da população LGBT, além de representatividade nos meios de comunicação – embora haja também muita reação contrária aos direitos adquiridos por eles.

Neste Dia dos Pais, o Pampulha ouviu histórias, desafios e alegrias de famílias compostas por dois pais.

Família Maués

O produtor rural Henrique Maués, 50, sempre quis ser pai. Quando soube que não era necessário ser casado para adotar, decidiu entrar na fila da adoção. Acabou sabendo, por meio de uma prima, que uma moça prestes a dar à luz em Belém, no Pará, não queria criar o filho. Ele, que morava em Entre Rios de Minas, correu imediatamente para lá e voltou com Fernando nos braços. “Minha mãe me ajudou muito, mas eu fazia questão de fazer tudo: trocar fralda, acordar de madrugada, dar mamadeira”, conta. Depois que o professor César Moreira, 38, entrou em suas vidas, eles passaram a dividir não só as tarefas, mas também as alegrias e atualmente está tramitando um processo para torná-lo legalmente pai do menino. “Nada me deu tanto trabalho, nenhum serviço, emprego, estudo. Mas também nada me dá tanto prazer – a nós dois – do que vê-lo feliz”, diz Henrique. Perguntado pela psicóloga sobre a qual dos dois recorreria em uma situação de perigo, Fernando não faz distinção: “o que estiver mais perto”. Ambos contam que ele nunca sofreu preconceito por ser filho de dois pais. César, que nunca havia pensado ter filhos, diz que o dia em que esse menino o chamou de pai, foi mais feliz do que quando a paróquia inteira o chamou de padre. “Tenho uma responsabilidade enorme em termos de mostrar a ele um mundo mais tolerante, humano, aberto às diferenças. Hoje, sinto que ajudo muito mais as pessoas do que quando era padre”, afirma.

Família = Pai, mãe e padrinho

Casados há 35 anos, o psicólogo e advogado Roberto Chateaubriand Domingues, 52, e seu parceiro tentaram, 25 anos atrás, adotar um bebê. Encontraram uma moça grávida que não queria criar a criança e acertaram que ela a doaria a eles. “Estávamos com quarto de bebê, enxoval, tudo pronto. Mas o pai apareceu no último momento reivindicando a guarda do filho”, conta.

O episódio foi tão traumático que os dois desistiram do plano. Até que, em 2010, Roberto conheceu uma mulher disposta a fazer uma reprodução assistida, não apenas com um doador de esperma, mas alguém que pudesse ser um pai presente. Ele, então, resolveu embarcar na proposta, sem o companheiro – mas com o apoio dele. Foi assim que nasceu Manuela, 4. “No nosso caso não é exatamente uma família com dois pais, porque, na minha cabeça, o título de pai é exclusivamente meu. De qualquer forma, todos nós formamos uma família, que ao mesmo tempo que é pouco ortodoxa, tem um traço convencional, afinal é um pai, uma mãe, uma filha e um padrinho”.
 
A menina encara a situação com completa naturalidade. “Como não vivemos uma vida clandestina, ela não tem estranhamento nenhum. Os mecanismos de socialização das crianças passam por essa lógica heteronormativa, mas a gente tenta desconstruir o tempo inteiro”, diz Roberto. “E ela adora o padrinho. Enquanto eu sou o que impõe limites, ele é o que faz todos os gostos”.
 
Pela diversidade
 
Garantias - Atualmente, todos os avanços alcançados pelos homossexuais – incluindo o direito ao casamento e à adoção – estão garantidos somente pelo poder judiciário, no Brasil. Ou seja, esses direitos não são assegurados por lei. 
Projeto - Por isso, foi elaborado pela OAB um projeto de lei de iniciativa popular prevendo uma legislação para garantir os direitos da população LGBT. 
Diversidade - O projeto foi chamado de Estatuto da Diversidade Sexual e precisa de 1 milhão e 400 mil assinaturas para que ele seja apresentado em Brasília. Assine em: www.estatutodiversidadesexual.com.br
 
Um retrocesso
Apesar dos avanços em relação aos direitos da população LGBT nos últimos anos, foi desengavetado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6583, de 2013, conhecido como Estatuto da Família. Ele impede casais homossexuais de se casarem e adotarem crianças – ambos direitos já reconhecidos pela Justiça, mas não previstos em lei. Também afeta famílias compostas por pessoas solteiras com filhos adotivos, por tios e sobrinhos, ou mesmo irmãos. Nenhum desses grupos, perante a lei, seria considerado família.
 
Aprovar esse projeto seria um desastre porque faria retroceder uma série de avanços que as famílias brasileiras, sobretudo as homoafetivas, vêm adquirindo ao longo dos anos, adverte a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB. “Uma das maiores contribuições do IBDFAM (criado em 1997), foi trazer para o ‘guarda-chuva’ do direito da família os grupos de pessoas ligados pela afetividade, independentemente de seus formatos”, explica. “Isso dá aos casais homossexuais direitos e deveres, tanto em relação um ao outro, quanto aos filhos”. 
 
Seria também deixar de reconhecer que, mesmo nas famílias tradicionais, os papéis da mãe e do pai não são mais tão estanques, como pondera o psicólogo e advogado Roberto Chateaubriand Domingues, 32. “Muita gente ainda acha que o arranjo familiar é papai, mamãe e filhinhos, não levando em consideração que o que existe são atribuições pré-estabelecidas como materna ou paterna, como o cuidado estar relacionado com a mãe e o sustento com o pai”, analisa. “Mesmo num casamento heterossexual, essas funções hoje são intercambiadas”, diz.

 

Mesmos direitos e deveres

Quando o jornalista Gilberto Scofield Jr., 49, e seu marido Rodrigo de Mello Pires Barbosa, 34, se encontraram pela primeira vez com seu filho Paulo Henrique, 5, o menino tinha uma bagagem grande de tristezas. Além de ter perdido a mãe, vítima do alcoolismo, e ter sido abandonado pelo pai, foi rejeitado por três casais candidatos a pais adotivos. Dois não o quiseram por considerá-lo “feinho”. O terceiro, porque o achou “preto demais”. A necessidade de carinho do menino era tão grande que a ligação com o casal foi instantânea. Gilberto chutou que levaria dois meses até que ele os chamasse de pais. Rodrigo, um. Paulo não levou mais que algumas horas.

A formação dessa família foi possível porque casais homoafetivos têm exatamente os mesmos direitos e deveres no processo de adoção que os heterossexuais no Brasil, desde 2011. Essa fatia da população ainda aparece timidamente nas estatísticas, mas aos poucos vai demarcando seu lugar. Em Belo Horizonte, dos 124 casais habilitados a adotar em 2014, três eram do mesmo sexo, sendo um deles de mulheres e dois de homens.

Mais reflexivos
De acordo com Silvana Martins, assistente social, coordenadora do Setor de Estudos Familiares da Vara Cível da Infância e da Juventude de BH, em geral, os homossexuais que se submetem ao processo de habilitação têm uma postura muito mais reflexiva a respeito de sua decisão e, na medida em que se tornam mais confortáveis com a situação – costumam chegar arredios, por medo do conservadorismo – têm uma análise crítica muito maior.

“Eles costumam ter muito empenho, atenção e disponibilidade em relação à possibilidade da adoção”, diz. “Nosso tratamento é igual para todos os casais, mas, no caso dos gays, nos preocupamos em verificar como eles lidam com a questão da homossexualidade, porque quando a criança chegar, vão se haver com questões concretas sobre isso e se não tiverem postura bem resolvida, fica difícil transmitir segurança”.

Existem, no senso comum, algumas ideias preconceituosas a respeito das famílias homoparentais. Uma delas seria de que pais gays teriam maior propensão a abusar sexualmente dos filhos. Outra, de que a criança criada por duas pessoas do mesmo sexo perderia a noção de gênero ou se tornaria necessariamente homossexual. A psicóloga e pesquisadora da homoparentalidade Mariana Farias assegura que são mitos. “Não existe literatura científica que confirme essas suposições, pelo contrário”, explica. “É preciso difundir essa informação e investir em estudos nessa área, que ainda são poucos, até para ajudar na construção de políticas públicas de combate ao preconceito”.

Amor que dá a volta ao mundo
O empresário Pedro Maciel Filho, 42, levava adormecido o sonho de ser pai, mesmo estando numa relação estável com o ortodontista Janderson Lima, 34, há 14 anos. Moradores de Governador Valadares, a possibilidade, no entanto, se mostrou concreta quando conheceram uma empresa israelense que promoveu o encontro deles com uma doadora de óvulos da África do Sul e duas mulheres da Tailândia para gestações assistidas, por meio de barriga de aluguel – que não é permitida no Brasil, mas, à altura, podia ser feita no país asiático. Começaram o processo em 2012 e, em outubro passado, deram boas-vindas às gêmeas Luisa e Valentina. Em fevereiro, chegou Vitor. “Aqui existe um imaginário, relacionado à novela (“Barriga de Aluguel”, de 1990), de que a mulher que faz a gestação vai querer tomar o menino, mas não é assim. Lá, eles têm outra compreensão e fazem, sim, pelo dinheiro, mas também para ajudar a outra família. Muitas dessas mulheres são casadas e têm filhos, inclusive”, conta Pedro que, com a visibilidade que seu caso teve, hoje ajuda tanto casais gays como héteros a realizar o processo. Sobre a paternidade, ele diz que é muito mais do que podia esperar – e já esperava muito – e que ela mudou seu jeito de ver o mundo. “Como empresário, por exemplo, antes eu encararia a crise em que vivemos de outra forma. Mas hoje, não. A responsabilidade é muito grande. Sei que não posso agir apenas focado nas questões do mercado porque há pessoas cuja sobrevivência está relacionada às minhas atitudes”.
 
Felicidade depois do abrigo
A vontade de adotar surgiu em Gilberto Scofield Jr., 49, e Rodrigo Barbosa, 34, juntos há 12 anos, em 2004, quando moraram na China e viram de perto a quantidade de meninas que eram abandonadas, por não poderem amparar seus pais na velhice. 
 
Ao encontrarem Paulo Henrique pela primeira vez, no abrigo em que ele vivia no Norte de Minas, a conexão foi imediata. Tanto que, no último dia antes de partirem para o Rio de Janeiro, o menino teve medo de entrar na instituição, ainda que só para se despedir. “Em casa, fizemos esforço para que ele reconhecesse aquele espaço como seu. Ele voltou a fazer xixi na cama, falar como bebê, mas no primeiro momento deixamos, porque ele precisava viver o que ainda não havia experimentado”. Gilberto conta que até hoje – estão com o filho há oito meses – o menino não sofreu preconceito por ser filho de pais gays, mas já foi alvo de racismo. “Uma vez que ele correu na nossa frente e chegou primeiro na porta do nosso prédio, uma senhora que saía disse que ele não morava lá. Outra, na padaria, ele se distanciou de mim e chegou perto do freezer de picolés. O gerente gritou: ‘O que você quer aqui? Pode sair!’”, lembra. “Sou versado em lidar com homofobia, mas ainda não com o racismo. Mas a lógica é parecida. Preciso ensinar lições de autoestima, estimulá-lo, dar exemplos de negros poderosos e empoderados”. Para Gilberto, um dos grandes desafios é acompanhar o pique do menino. “Me preparei muito bem psicologicamente, mas o físico está cansado”, diz.
 
Livro infantil trata tema
O livro “Tenho Dois Papais”, da designer belo-horizontina Bela Bordeaux, 25, lançado na última quinta, aborda o tema da homoparentalidade com linguagem direcionada para o público infantil. “Nosso objetivo é fazer as crianças filhas de dois pais se sentirem incluídas, representadas. E mostrar para os filhos de héteros outros modelos possíveis”, explica.
 
A designer conta que se surpreendeu quando o interesse pelo livro (produzido via financiamento coletivo e disponível para compra em www.tenhodoispapais.com.br) “extrapolou a bolha da comunidade LGBT”. “Temos uma amostragem da nossa página do Facebook que mostra que há muitos adolescentes discutindo, e mães heterossexuais que querem que os filhos cresçam com a mente aberta”, conta. “Agora, na compra do livro, o público que mais procura são pessoas entre 20 e 25 anos que se engajam com a causa, independentemente da sexualidade. Virou um assunto de interesse geral”. Bela diz que também recebe muitos pedidos de um “Tenho Duas Mamães” e que pretende fazê-lo.

 

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