Mais amor por favor

Receba as flores que lhe dou

Projetos que propagam a delicadeza se espraiam pela capital mineira

Por Patricia Cassese
Publicado em 12 de outubro de 2018 | 16:51
 
 
 
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Em março último, de dentro de seu apartamento, no bairro Sion, a decoradora de interiores Odette Castro presenciou uma situação que, ocorrida na rua, reverberava raiva. Impactada a ponto de sentir uma dor forte no estômago, naquele momento assumiu consigo um compromisso: o de espalhar flores (uma por dia), na tentativa de espraiar alegria. Não flores naturais, mas confeccionadas por ela, em crochê. 

A iniciativa ganhou um nome – “Uma Flor Cura Uma Dor” –, se desdobrou em projeto e já vem gerando dividendos: no Anchieta, bairro vizinho, a aposentada Juza Pádua, por exemplo, aderiu ao movimento e espalha flores de chita nos galhos de uma árvore da rua Francisco Deslandes. Em tempos difíceis, atitudes afins lembram a fábula do passarinho que, na contramão da atitude dos outros animais diante do incêndio na floresta, que é a de correr no sentido contrário ao das chamas, voa ao encontro delas, levando gotas de água no bico, movido pela convicção de que, se não apagar de fato o fogo, ao menos terá feito sua parte. Assim como essa, outras iniciativas distintas, dispersas pela cidade, se tangenciam na esperança de dias melhores, mesmo com toda sorte de intempéries. 

A disposição de Odette, por exemplo, não foi abalada nem pela tragédia pessoal que viveu recentemente: a perda da filha, Beatriz. Uma dor de dimensões incalculáveis. Ela reconhece que no primeiro dia em que saiu com seu cesto de flores, no citado mês de março, sentiu um certo constrangimento. Hoje, se sente feliz pela acolhida de transeuntes e trabalhadores do entorno, como faxineiras e porteiros. Alguns estranham o fato de ela estar gastando seu tempo e mesmo material (as linhas), mas Odette contemporiza. “É muito gratificante. As pessoas tiram fotos, me escrevem (no Facebook), senhoras discutem qual flor preferem... 

Quando é abordada em ação, aproveita para falar sobre inclusão e tentar dissipar o ódio que tenta ampliar seu lugar no mundo. “Acredito que se uma pessoa que esteja em um momento de ódio olhar para essa flor por um segundo que seja, ao menos nesta fração de tempo, vai deixar de lado esse sentimento ruim”, aposta, frisando acreditar que a soma desses momentos teria o potencial de mudar a vibração. Mas sim, ela já colheu reações que duraram bem mais que um segundo, como a da garotinha que cogitava com a mãe a existência de uma eventual fada que espalha as flores à noite, sem saber que a mulher que a ouvia era a autora do ato, inspirado em uma iniciativa vista na Alemanha.


No caso de Juza, 77, o material usado é a chita. Artista plástica, ela confessa que sempre nutriu um apreço particular pelo tecido, e, ao fazer uma oficina com Odette, resolveu aderir ao projeto confeccionando flores para as mais diversas dores, de amigos e conhecidos. “Pode ser até uma briga com o namorado”, diverte-se, também feliz com o fato de ver suas criações fotografadas a torto e a direito. “Na verdade, algumas foram até levadas”, conforma-se. 
Merece destaque o fato de que, ao colocar a flor na árvore, Juza o faz em estado de meditação. “Sim, tenho condições de fazer a meditação em movimento. Me concentro na pessoa, para que tenha a dor aliviada”, diz, reconhecendo que, em contrapartida, também é beneficiada pela aura gerada.

Fora do projeto “Uma Flor Cura uma Dor”, outras iniciativas que visam suscitar um sorriso podem ser vistas em outras copas de árvores da cidade. Na Serra, por exemplo, a que se situa próxima à Igreja de Santana está sempre decorada. Já na Savassi, a árvore em frente à loja Patrícia de Deus, da proprietária de mesmo nome, na rua Fernandes Tourinho, tem como charme adicional um banquinho, no qual os transeuntes podem se sentar para se refugiar do calor e bater um papo. O local é também palco de projetos como o “Bordado no Banquinho”, bem como saraus, oficinas para crianças, lançamentos de livros e apresentações de corais (como o Coral dos Desafinados).

O projeto de Patrícia, aliás, já recebeu o prêmio Gentileza Urbana, do Instituto dos Arquitetos do Brasil, seção Minas Gerais. “O mundo está muito duro, precisando de mais afeto e carinho, alegria e amor, e é isso que quero passar. Por isso a gente enfeita a arvore, é um movimento”, diz ela, que, no caso, se vale de flores confeccionadas em papel de seda. “Agora, estamos preparando um evento especial para o Outubro Rosa, com essa cor”, avisa ela.</CW> 

O dia a dia
A terapeuta holística Daniela Machado entende que nenhuma ação é pequena quando o objetivo é tornar a vida das pessoas um pouco melhor. “O ódio não nasce do tamanho que tem quando a gente finalmente o vê. Não é de repente que as pessoas começam a se agredir. Isso nasce pequeno e a gente negligencia. Quando nos damos conta, o melhor amigo bloqueou a gente no Facebook e até a festa de Natal da família foi cancelada”, salienta ela. 

Para Daniela, é no dia a dia que alimentamos a paz ou a guerra. “Pequenas ações para semear a paz podem até ter, a princípio, efeitos pequenos – mas podem agir de forma imensa sobre as pessoas. E são as pessoas agindo de modo diferente do habitual que tornam-se capazes de transformar grandes realidades”, aposta ela.

Por um tempo de delicadezas

Se Odette Castro aproveita o projeto “Uma Flor Cura Uma Dor” para abordar a questão da inclusão, outros projetos têm essa pauta como espinha dorsal. É o caso do Tina Descolada, tocado pela psicóloga Marta há seis anos. Até então, Marta se sentia profundamente incomodada com o preconceito e a discriminação que afetavam pessoas – em particular, crianças – com necessidades especiais, obesas ou vítimas de racismo. Com uma boneca em mãos, resolveu fazer dela um instrumento para empoderar pessoas. E surgiu Valentina, a boneca que é fotografada pela cidade com sua cadeira de rodas. Na sequência, vieram outras bonecas para representar todas as chamadas “minorias”, como a com vitiligo ou a obesa. 

Não satisfeita, Marta Alencar decidiu espalhar corações pela cidade. “Queria um ativismo também presencial, que promovesse a interação”, conta ela, que já perdeu a conta do número de oficinas que ministrou – e dos corações que, por meio delas, foram confeccionados. Suas iniciativas já foram abarcadas por grandes festivais, como o “Virada Cultural”. Para algumas ações, ela arregimenta monitores que, diz, “representam a diversidade humana”. “Em uma delas, foram um transgênero, uma cega, um rapaz que não tinha os dois braços e duas cadeirantes. Quando essas pessoas se relacionam com os presentes, mesmo que em uma conversa informal, todos percebem que, no fundo, temos as mesmas dores e angústias, e assimilam que as diferenças são naturais”, frisa ela, que, nestas empreitadas, sempre conta com apoio de entidades como a das mães da Associação Mineira de Reabilitação. Uma particularidade é que, nas oficinas, Marta pontifica que não existe certo ou errado, e que cada um tem o seu tempo.

Da mesma forma, Odette Castro conta que opera na linha do wabisabi, a técnica oriental enxerga a beleza na imperfeição. “Não faço o tricô convencional, nunca olhei uma receita. No meu trabalho, não tem desmanche”, diz ela, que pretende reforçar o viés inclusivo em seu labor. Atualmente, ela está negociando uma oficina das flores para mulheres que estão se submetendo à quimioterapia na luta contra o câncer. A ação, vale dizer, vai visar também o acompanhante da paciente, se for o caso. 

Orquídeas
E se as flores artificiais são o foco de Odette, Patrícia e Juza, entre outras, o de Olga Carneiro, 79, são as naturais. Mais precisamente, as orquídeas. Há oito anos, ela, que então era presidente da Associação Mineira de Orquidófilos, foi abordada por uma pessoa do Instituto São Rafael, que comentou sobre o quanto seria interessante que as pessoas cegas tivessem condições de apreciar a beleza das orquídeas. “Na hora, falei: ‘Vamos tentar alguma coisa’. Podemos fazer assim, você leva quem quiser ir e, pelo tato, vamos experimentando”.

Deu certo, e a iniciativa segue sendo replicada. “Alguns deles já tiveram a visão e a perderam. Aos que nunca tiveram, a gente tenta relacionar a cor a alguma sensação, como a de o vermelho ser uma cor quente, por exemplo. Isso dá uma certa orientação”.

Não bastasse, Olga lembra que os cegos têm os demais sentidos bastante aguçados, o que viabiliza experiências táteis ou olfativas. No caso das flores comestíveis, o sabor também é outro viés a ser explorado. “E isso não vale só para as orquídeas, claro”. 
Como as demais entrevistadas, Olga conta que seu ministério é uma via de mão dupla. “Aliás, às vezes, o grau de satisfação é mais da gente”, advoga ela, que, com um confesso dissabor, vem detectando no mundo um avanço do egoísmo, quadro que iniciativas afins podem ajudar a minimizar.

Em tempo: na última sexta (12), Olga ministrou mais uma oficina sensorial, gratuita – no caso, dentro da programação oficial da 39ª Feira e Exposição Nacional de Orquídeas, que, cumpre frisar, segue até este domingo  (a 39ª Feira e Exposição Nacional de Orquídeas pode ser visitada neste sábado, 13, das 9h às 18h, e no domingo, 14, das 9h às 17h. O evento acontece na Serraria Souza Pinto - av. Assis Chateaubriand, 809, Centro -. Entrada gratuita. Informações: facebook/amoorquideasbh).

Diferenças

Um episódio de ódio foi o detonador do projeto “Uma Flor Cura Uma Dor”, de Odette e suas discípulas, como Juza. O incômodo desencadeou o “Tina Descolada” e o “Oficina de Corações”. O desejo de ir além, a oficina sensorial de Olga. O querer espalhar alegria foi o norte de Patrícia. Com força e com vontade, as cinco entrevistadas transmutaram experiências ruins em ações para o bem comum. Mesmo que, por vezes, nem sempre recebam em troca o reconhecimento.


Dias atrás, Odette ouviu o comentário de uma transeunte que, sem saber que era ela a autora da ação das flores de crochê, falou, a um interlocutor, que devia ser obra de alguém “sem ter o que fazer”. Nada que abalasse a tricoteira, que já planeja uma árvore para o Natal.

Seminário

No próximo dia 24, a terapeuta Daniela Mata Machado ministra o seminário “Pacificando as Relações”, voltado a pais e mães interessados em trabalhar a cultura de paz na relação com seus filhos. Será no Vértice (Rua Itaí, 782, Santa Efigênia), a partir das 18h30. Valor: R$ 100. Clique para inscrições 

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