Até por volta dos 7 anos de idade, o projetista Filipe Rodrigues Figueiredo, 25, era gago. Para solucionar o problema, seu pai recorrer a uma simpatia: deu dois dentes de alho para o menino comer e, em seguida, despejou duas garrafas d’água gelada em sua cabeça. Foi tiro e queda. “Eu brinco que ele podia ter usado só metade da receita porque hoje eu falo rápido demais”, diz Figueiredo.
Quando tinha a mesma idade, a dona de casa Serafina Terezinha Pereira, 78, mais conhecida como Dona Fininha, conta que trouxe o pai de volta do mundo dos mortos, ainda em sua cidade natal, São João Evangelista, no Vale do Rio Doce. “Ele morreu às 15h. Passamos o resto do dia preparando seu enterro e, à meia-noite, chegou um homem em nossa casa que conversou comigo e pediu pra entrar. Ele me ensinou um remédio com folha de maracujá e disse para eu dar pro meu pai por nove dias. Às 3h, ele ressuscitou e nós nunca mais vimos o tal homem, nem conseguimos saber nada sobre ele. Meu pai, por sua vez, viveu por muitos e muitos anos”, conta Dona Fininha, que ali descobriu seu dom para a cura e se tornou benzedeira.
Traço marcante da cultura brasileira, sobretudo da mineira, a crença nos saberes e fazeres populares de cura por meio de rituais é uma herança de nossa formação miscigenada. “Alguns estudos apontam que, no período colonial, a fusão de elementos da tradição indígena, negra e europeia deu origem a esse aspecto de nossa identidade, que também tem a ver com o fato de que o serviço de assistência à saúde era precário e não alcançava toda a população”, explica Luis Molinari Mundim, gerente de patrimônio imaterial do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha). “Por isso, as simpatias, benzeções, uso de plantas e chás têm a ver, acima de tudo, com a questão do cuidado. Tudo se mistura numa tentativa de oferecer bem-estar, alívio para as pessoas”, afirma Mundim.
Por mais que a sociedade tenha se transformado muito, essas tradições vão se modificando, mas não se perdem com o passar do tempo, como esclarece Mundim. “Seus elementos fundadores permanecem nos dias atuais, como no caso das benzeções, que ainda são muito fortes no nosso país, especialmente em Minas Gerais. Mas elas vão sendo ressignificadas, não são estanques”, afirma.
Foi com o intuito de promover uma renovação dessas práticas, combinando a tradição oral com a cultura, a arte e a tecnologia atuais que foi criado o projeto Simpatias da Dalva. Conduzida pelas pesquisadoras belo-horizontinas Thais Mol, 39, e Luciana Tanure, 38, a iniciativa parte do material deixado por Dalva Moreira Borges (1928-1988), dona de casa mineira radicada no Rio de Janeiro que realizava práticas populares de cura e as registrava em bilhetes endereçados a seu marido e numa caderneta intitulada “Simpatias de A a Z”, que continha rituais para encontrar saúde, casamento, filhos, dinheiro, trabalho.
“Dalva era uma mulher de classe média, urbana, cosmopolita – tanto é que foi de Divinópolis para o Rio, numa época em que essa era uma cidade de ouro – vivia uma vida normal no seu apartamento, mas intimamente se valia desses processos. Suas simpatias têm mais ênfase no desejo de amor, a paixão era algo muito central em sua vida”, afirma Thais. “Nós queremos explorar essa história de que a simpatia existe nos ambientes mais diversos e trazer isso pra hoje. Numa época em que falamos tanto de empoderamento, nesses ritos em que nos apropriamos da situação e agimos com mais consciência do gesto, da palavra, do ato, do olhar, o corpo se empodera”.
No último dia 14, foi realizada uma “Ciranda de conversas sobre ritualizações no cotidiano” como parte do processo que resultará num livro, a ser lançado até o fim deste ano, como fruto da pesquisa que engloba o Simpatias da Dalva. “Queremos valorizar esse saber, que é brasileiro. E também queremos que as pessoas criem seus próprios rituais. Pode ser que muita gente não faça uma receita de simpatia inteira, mas todo mundo faz alguma coisa, seja colocar uma espada-de-são-jorge na frente de casa ou pendurar um terço no carro. Esse é o paradoxo de hoje, por mais tecnológicos que estejamos nos tornando, crenças como o budismo e a ioga se espalharam pelo mundo no século XX. Saberes ancestrais como esses se difundem em conjunto com o desenvolvimento da ciência, uma coisa não elimina a outra. Steve Jobs (1955-2011), que criou um dos produtos mais ‘avant garde’ da contemporaneidade (ele foi o fundador da Apple), era budista. Nada exclui nada”, analisa Thais.
Professor de psicologia cognitiva na Universidade do Alabama, nos Estados Unidos, o belo-horizontino André Souza confirma a hipótese da proponente do projeto Simpatias da Dalva. Coautor de uma pesquisa que investiga como a cognição humana funciona com relação a rituais e religiosidades, ele realizou experimentos relacionados às simpatias tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, inclusive em Belo Horizonte.
“Uma frente teórica diz que nosso sistema cognitivo está sempre buscando controle da situação e, para isso, buscamos explicações para tudo à nossa volta. Nas situações de descontrole, a probabilidade de acreditarmos na simpatia é maior porque assim as controlaríamos”, explica. “O que acontece é que a tecnologia pode justamente dar essa sensação de descontrole. Com um acesso muito grande à informação, muitas vezes ela chega até nós pouco estruturada, o que pode nos provocar insegurança e fazer com que nos agarremos a outros meios de compreensão e a superstição seria um deles”.
A pesquisa ainda demonstra que a crença em superstições e religiosidade são altamente cognitivas e todo ser humano vai apresentá-las em alguma medida. “Acreditar ou não nos rituais não é coisa de gente com pouca escolaridade ou baixo nível de conhecimento, faz parte do nosso sistema cognitivo. E se eles funcionam de fato ou não, pouco importa. O que importa é a forma como as pessoas os percebem”, acrescenta o professor.
Herança
Filho de Dona Fininha, o músico Sérgio Pererê acredita que, de alguma forma, herdou o dom da mãe. “Segui o caminho da arte, que também é um tipo de cura. O cantar, o tocar e o compor são formas de vencer, de curar”, diz. Ele acredita que enquanto a natureza resistir, os rituais de cura vão perdurar. “O que vai nos garantir a vida está na natureza, assim como a benzeção, a cura, a arte, a fé, e tudo isso é mais antigo que nós. Enquanto existir uma plantinha verde, vai existir a fé, a benzeção, os rituais, porque isso passa de geração pra geração, de modo silencioso”.
No universo de cada um
Desde muito criança, Serafina Terezinha Pereira, 78, a Dona Fininha, percebeu que tinha uma ligação misteriosa com a natureza. “Eu falava com minha mãe que uma árvore me chamava, mas ela não acreditava. Um dia eu saí atrás dessa voz. Andei um dia inteiro e acabei chegando nessa árvore. Embaixo dela tinha uma gata bonita, da cara pintada, deitada. Quando voltei para casa soube que todos estavam atrás de mim. Me falaram que aquela gata era a onça que os lavradores estavam procurando. A partir desse dia, comecei a ser chamada para benzer”, conta.
Desde então, já são mais de sete décadas dedicadas à benzeção, tendo ajudado um homem que se arrastava a voltar a andar, uma mulher com um machucado grave na perna, e até benzido o set de filmagens da série global “Subúrbia” (2012) – do qual ela participou – e seu diretor, Luiz Fernando Carvalho, que dirige atualmente a novela “Velho Chico”. “Eu sinto e a fala vem. É uma fala completamente diferente de qualquer uma, muito suave, macia, é um tipo de segredo espiritual que você só sabe na hora de fazer a oração”, explica a benzedeira, cujo marido também tinha o dom da cura e com ele benzeu por mais de 30 anos, sem nunca aceitar pagamentos.
Dona Fininha acredita que foi Nossa Senhora do Rosário, de quem é devota fervorosa, quem lhe concedeu o dom, para ajudá-la a enfrentar as adversidades. “Ela me ajudou a salvar muitas vidas na minha terra (São João Evangelista, no Vale do Rio Doce). Eu sou muito feliz e grata por isso”, diz.
Um de seus cinco filhos, o músico Sérgio Pererê afirma que a fé transmitida pelos pais é um referencial muito grande para ele e seus irmãos. “A crença deixou de ser uma coisa relacionada à ida a uma missa ou culto e passou a ser algo presente no nosso dia a dia. Crescemos vendo a cura constantemente. O que as pessoas chamam de milagre nós víamos o tempo todo. Inclusive demorei muito tempo para saber o que era um hospital”, conta.
De uma maneira análoga, o projetista Filipe Rodrigues Figueiredo, 25, que diz ter tido sua gagueira curada por uma simpatia, também é uma pessoa aberta à fé. “Simpatia mesmo eu só lembro de ter feito mais uma, que aprendi no espiritismo. Para resolver uma desavença no trabalho, peguei um papel, escrevi o nome do colega que não gostava de mim de trás pra frente, pus dentro de uma banana caturra e levei ao congelador. Na mesma semana começamos a nos entender”, lembra. “Mas eu tenho uma espiritualidade forte, fui médium até os 17 anos, sou muito aberto à fé. Se pudesse, faria um curso para conhecer um pouco de cada religião”.
Entender o mundo
Assim como eles, as proponentes do projeto Simpatias da Dalva, Thais Mol, 39, e Luciana Tanure, 38, também têm afinidade pessoal com o universo dos rituais. “Tem a ver com meu interesse em entender como o mundo funciona. Se existe uma Lua que mexe com as marés, ela também mexe com meus fluidos, também sou tocada. Meu olhar é voltado à compreensão desses fenômenos para aí poder lidar, manipular os elementos a meu favor, saber que algo acontece e eu posso atuar ali”, afirma Thais.
Já, para Luciana, a admiração vem da tentativa de promover uma cura, um encontro, um acontecimento desejado dentro de uma realidade. “De certa forma, é lidar com o real de cada um, o íntimo, o particular, o universo mágico de cada percurso de vida. Eu gosto de ritualizar e acho que os rituais nos ensinam”, diz.
Mesmo André Souza, professor de psicologia cognitiva na Universidade do Alabama, nos Estados Unidos, tem esse traço forte em sua formação. “Minha mãe sempre gostou muito de simpatias. Quando eu era criança, fazia muitas. Por exemplo: dormir com um livro aberto sob o travesseiro e de camisa azul para ir bem numa prova. Mesmo depois de mais velho, quando ia ao Mineirão, eu procurava sentar sempre no mesmo lugar porque onde eu ficava determinava se meu time ia ganhar”, conta.