Reportagem

Vale tudo

Congresso de dança de salão em BH discute os rumos desta arte e legitima o fim de padrões pré-estabelecidos

Por Patrícia Cassese
Publicado em 28 de abril de 2018 | 03:00
 
 
 
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Nem poderia ser diferente. Em um momento no qual questões de gênero e o combate ao machismo pulsam com impressionante energia, nada mais natural que as discussões reverberem também em ambientes nos quais a tradição ainda dita as regras – caso do universo da dança de salão. Não que os ventos da igualdade de direitos ainda não tenham soprado nessa direção – tanto que o “só não vale dançar homem com homem/nem mulher com mulher”, cantado espirituosamente por Tim Maia na música “Vale Tudo”, há muito já é uma questão ultrapassada.

Nesse sentido, Belo Horizonte pode se vangloriar de ser a cidade escolhida para sediar o 1º Congresso de Dança de Salão Contemporânea: Gênero e Diversidade na Dança de Salão, realizado pelo Centro de Formação Artística e Tecnológica – Cefart, da Fundação Clóvis Salgado. Desde a última sexta-feira (27) e até este domingo (29), palestras, debates, mesas redondas, oficinas de dança, espetáculos, uma mostra de dança aberta e bailes de confraternização entram em cena propondo uma visão investigativa da arte e buscando fortalecer as práticas e o pensamento crítico no contexto da dança de salão contemporânea, com participação de grupos e palestrantes LGBTQ e feministas.

A expectativa é que os caminhos propostos se transmutem em práticas. Mas qual seria o epicentro dessas discussões? Curador da iniciativa, Samuel Samways, bailarino e pesquisador do Programa de Residência para Pesquisas Artísticas do Cefart, cita, por exemplo, a estrutura vigente na dança de salão, que, de certa forma, reflete o machismo ainda vigente – como ser o homem o condutor do par nas pistas.

Fato é que o congresso ratifica que esse universo já há algum tempo vem sendo afetado por mobilizações que pululam daqui e dali. Ano passado, por exemplo, João Pessoa sediou uma discussão sobre o tema. Mas a linha do tempo registra outras iniciativas afins. Em 2010, por exemplo, o cineasta Marcelo Caetano levou às telas “Bailão”, que flagrava histórias sobre o ABC Bailão, evento que atrai gays das mais variadas faixas etárias à Vila Buarque, em São Paulo. 

No que tange a práticas machistas no mundo da dança, o grupo belo-horizontino BeHoppers, que advoga a causa do lindy hop, desenvolveu, em março do ano passado, um mapeamento para entender onde havia indícios de machismo. “Fizemos, na nossa pagina no Facebook, uma campanha, com posts diários, por um mês. A gente lançava frases para o público (como ‘Nao trate a pessoa que esta sendo conduzida como um (a) boneco (a)’ ) e íamos coletando os comentários. Daí, listamos ações de modo a combatê-las. Teve um alcance muito bom,”, avalia Camila Magalhães, uma das fundadoras da companhia. 

Condução

Nos salões propriamente ditos, resquícios de machismo podem ser detectados, como dito, no processo de condução do casal, função historicamente delegada ao homem. A ideia, porém, não é que a mulher passe pura e simplesmente a assumir esse papel. Uma ideia seria que ambos, alternadamente, possam conduzir a dança – ou, em comum acordo, decidirem a quem caberá a condução, independentemente do sexo.

Samuel, aliás, já há algum tempo desenvolve a pesquisa “Condução Compartilhada de Dança de Salão”, que, entre outros pilares, pretende “valorizar pedagogias e movimentos artísticos que criam espaços de visibilidade para corpos heterogêneos, para a emancipação das mulheres e os diversos gêneros e sexualidades, promovendo uma experiência imersiva de residência”.

O bailarino explica o termo “condução mútua”. “Dentro da estrutura da condução, algumas pessoas, nos dias atuais, já procuram alternar os papeis. Mas percebi que, de toda forma, isso mantinha a estrutura hierárquica, e quis aboli-la. Nesse sistema, então, não há uma pessoa fazendo a condução, é uma outra lógica. E é essa minha pesquisa que estou introduzindo no congresso”, elucida Samways, que atua há 11 anos neste universo, já tendo passado por escolas-referência na capital mineira, como a Mimulus e a Camaleão.

Na verdade, o trabalho do curitibano (radicado há seis anos em BH) surgiu a partir da detecção de um incômodo. “Sendo homem, hetero, cis, tive, no curso da vida, vários privilégios – como tradicionalmente acontece na história patriarcal. Mas, no universo da dança de salão, algumas questões sempre me geraram um certo incômodo. Por exemplo, se o homem dança muito, se ele se expressa muito na pista, acabava sendo (pejorativamente) chamado de ‘afeminado’, ou seja, acaba sendo induzido a fazer a postura do ‘homem másculo”. E isso é muito limitante social e artisticamente. Como disse, sempre foi um incômodo que me acompanhava. Mas foi ao trabalhar com artistas feministas e grupos LGBTs que me permiti aprender com essas pessoas de fato, como alguém que tenta exercer a escuta e que está aberto”, rememora o bailarino.

Potência

A partir daí, Samuel diz que passou a criar mais consciência sobre a questão. “E busquei aprofundar meu trabalho em conjunto a essas pessoas numa tentativa de, dentro da dança de salão, contemplar todos os grupos – portanto, não só as minorias”, salienta ele, lembrando, mais uma vez, que homens heterossexuais cis acabam sendo limitados “por um padrão opressor e, de certa forma, tosco”. </CW>
Samuel acredita piamente que a dança de salão é um espaço de encontro no qual o frequentador promove a entrega de seu corpo à dança. “Sendo, assim, um espaço potente para a empatia e, dentro dela, importante para a construção em conjunto. O objetivo é esse: reforçar a empatia pelo outro, possibilitando, ali, não apenas o lazer, mas um momento social potencializado, de aprendizagem”. 

São dois pra lá, dois pra cá

Ao se aventurar a lançar questões para o público com fins de discutir eventuais práticas machistas, o grupo BeHoppers se deparou com algumas surpresas. “Uma delas, ao menos para mim, foi a resistência que algumas pessoas tiveram em reconhecer que algumas práticas comuns ao universo da dança eram machistas. Havia um discurso de cavalheirismo, do alegar ‘ah, mas isso já existe há centenas de anos, faz parte da cultura da dança de salão”, explica Camila Magalhães, uma das fundadoras do coletivo, que dá um exemplo. “É difícil entender que, por mais que seja uma tradição a mulher usar salto, não quer dizer que aquela não usa não tenha feminilidade. Há falas como: ‘Nossa, embeleza a dança...’. Pode embelezar a dança, mas, se a mulher não quiser, não precisa usar. Então, o discurso do ‘tradicional’ veio muito forte, e a gente decidiu tentar exercer um papel educativo”, relembra.

E não só no que diz respeito ao machismo. Nos eventos do BeHoppers, as conformações de casal são diversificadas, inclusive no que tange à figura do condutor e do conduzido. “A gente incentiva que se aprenda os dois lados ao mesmo tempo, até para estimular a dança igualitária, fugir dos papeis de dama e cavalheiro. E as mulheres podem, por exemplo, se sentir à vontade para chamar outros rapazes ou mulheres – mesmo porque, a ideia é sempre promover ambientes seguros, ou seja, se houver alguma espécie de LGBTfobia ou de machismo, quem está sendo alvo pode procurar a produção, porque não vai passar batido. A gente sempre frisa isso. Pode parecer uma coisa pequena, mas já modifica, de certa forma, o cenário”, assegura. 

Camila, porém, faz questão de frisar que muitas dessas iniciativas se coadunam com o próprio espírito do lindy hop, o gênero matricial do BeHoppers. “O Lindy surgiu nas décadas de 1920, 1930, e já trouxe alguns aspectos diferenciados, por assim dizer, para a dança a dois, contribuindo para dar maior autonomia a quem está sendo conduzido. Um segundo fator, é que, no passado, quando os homens iam para a guerra, era muito comum que as mulheres dançassem entre si, o que contribuiu para a quebra de questões de gênero, aspectos normativos. Quando, mais recentemente, o lindy hop volta à cena, a cultura em seu entorno já propõe mais autonomia tanto para quem está sendo conduzido quanto para quem conduz, bem como casais que não são necessariamente formados por um homem e uma mulher”.

Inclusão

Doutoranda em Educação da Dança e professora de dança de salão em Campinas, Carolina Polezi frisa, porém, que as novas formas de condução não excluem as tradicionais. “A ideia é que possamos conviver todos juntos. O casal tradicional (homem e mulher, sendo ele o condutor e ela a conduzida) pode, claro, coabitar o ambiente com as outras formações possíveis”. A simples visualização dessas outras formações na pista, por exemplo, já permitiria uma naturalização. “E, assim, as pessoas podem, a partir daí, optar (pela que mais se adapta às suas vontades). Então, não é que as formas tradicionais vão desaparecer”, diz ela, que, no congresso, vai integrar a mesa redonda “Novos Rumos Para a Dança de Salão”. 
Carolina lembra que nas discussões ocorridas em João Pessoa, ano passado, sobre propostas além das tradicionais na dança de salão, havia o desejo de, ao fim, formatar um documento, o que acabou não acontecendo. “Mas uma questão interessante envolvendo os profissionais tanto ali quanto os que vêm agregar a esse congresso é que muitos têm, por trás, uma pesquisa acadêmica, uma bolsa de estudos – e a dança de salão sempre foi uma arte não agregada à academia. É uma nova perspectiva que se inaugura”.

Improviso

Fabrício Martins, coordenador do Programa de Residência Artística do Cefart e outro participante do Congresso de Dança de Salão, também enaltece o potencial das novas possibilidades no segmento, inclusive no que diz respeito a regras. Existe, por exemplo, um flerte, um diálogo com outras linguagens, como a improvisação. Ou seja, há regras? Sim, mas também é permitido quebrá-las.
“A dança de salão ainda é um ambiente no qual o tradicional predomina, mas, por outro lado, a gente percebe que a humanidade está vivenciando um momento no qual as caixinhas tradicionais estão sendo questionadas. É, pois, um momento de plantar sementinhas, de tentar mudar”, alega. 

"Forró queer", experiência que deu certo

Nome que desponta com destaque nessa nova configuração da dança de salão na capital mineira, Laura James é outra das presenças no congresso. Proprietária da escola Ata-Me, que, entre outras iniciativas, promove o “Forró Queer”, ela conta que, no passado, chegou a trabalhar com o viés da dança de salão tradicional. “Mas já com alguns diferenciais, pois sempre tentei levar a questão da igualdade de gênero às salas de aula”. Em 2012, porém, ela enfrentou uma crise, quando, diz, teve que lidar com a sua própria identidade de gênero. E uma depressão.

“Eu transitava num ambiente tradicional, machista. Pensei: ‘Como poderia dar certo ali, como uma mulher trans?”. Com a própria escola, veio a certeza de que poderia atrair outras pessoas que, por motivos vários, se sentiam excluídas. Ano passado, ela deu início ao “Forró Queer”. “Costumo brincar que é o ambiente dos sonhos, gostoso, inclusivo. É muito bonito ver como as pessoas heterossexuais se relacionam com pessoas não-héteros. Existe, ali, uma sensibilidade na atmosfera. Até a paquera rola com respeito”.

Destaques

Sábado (28)

17h30 às 19h Debate: “Para Além de Damas e Cavalheiros: Os Papéis de Gênero nas Danças de Salão. Teatro Marília (av. Alfredo Balena, 586)

20h “Monstra”. Espetáculo do Terceira Margem – Coletivo de Dança. Teatro Marília.

23h Baile de Dança Contemporânea. Buena Danza (av. Getúlio Vargas, 471)

Domingo (29)

17h30 Palestra performance “Lindy Hop – Percursos para uma Dança sem Estereótipos de Gênero” com o BeHoppers. Teatro João Ceschiatti (av. Afonso Pena, 1.537).

18h30 Mesa Redonda “Novos Rumos para a Dança de Salão”. Teatro João Ceschiatti. 

22h Baile de encerramento. Buena Danza.

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