LITERATURA

Viva o cordel

Gênero acaba de ter seu status elevado a patrimônio imaterial cultural do país

Por Patrícia Cassese
Publicado em 22 de setembro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Feliz, com certeza. Mas não necessariamente surpreso. O registro da literatura de cordel como patrimônio cultural imaterial do Brasil, conquistado na última quarta-feira (19), em decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, na verdade, já era aguardado por Olegário Alfredo, um dos que batalham por essa frente em Minas Gerais. Nascido em Teófilo Otoni, Mestre Gaio, como também é conhecido, é um dos dois mineiros a integrar a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) – o outro é o escritor, cantor e compositor Téo Azevedo. Por este motivo, já vinha acompanhando de perto toda a tramitação do processo – daí, a “não surpresa”. 

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) define como “bem imaterial” as práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e lugares. No caso da literatura de cordel, o Ministério da Cultura (MinC) a entende como um gênero literário que, escrito na forma rimada, “revela o imaginário coletivo, a memória social e o ponto de vista dos poetas sobre acontecimentos vividos ou imaginados”.

Tendo sua gênese no Norte e Nordeste, a literatura de cordel acabou arregimentando adeptos em todas as demais regiões do Brasil. E em Minas Gerais não foi diferente – e o próprio Mestre Gaio é um exemplo.

Do alto de seus 64 anos, ele avalia que a chancela de patrimônio cultural imaterial, na prática, não afeta em muito a realidade dos signatários do gênero. O ganho estaria em atestar a manifestação, da forma como foi reconhecida (pontuando-se que suas raízes podem ser localizadas em outras culturas, como a lusitana), como “brasileira”, em tempos nos quais apropriações são praticadas a torto e a direito mundo afora. E se o gênero ganhou matizes específicos em plagas tupiniquins, em Minas adquiriu um sotaque próprio. 

Entre os propósitos da obra de Mestre Gaio, por exemplo, está o de difundir a cultura mineira. Seus títulos já repassaram, por exemplo, a história do Mercado Central, do presépio do Pipiripau ou do Pirulito da Praça Sete. Também se debruçaram sobre lendas urbanas, como a Loira do Bonfim, ou sobre figuras históricas, como Xica da Silva. E, ainda, escritores, como Adélia Prado, Carlos Drummond e Guimarães Rosa. Ah, sim, a rivalidade Galo X Cruzeiro também.

No palco
Em outro contexto, a literatura de cordel é agora transposta para o palco pelo multiartista Sérgio Pererê: no próximo dia 29, ele apresentar, no Tambor Mineiro, “A Morte de Antônio Preto”, que inspirou um livro homônimo, lançado em abril. “Na verdade, a montagem – nem chamo de espetáculo, mas de uma narração de texto, com elementos cênicos bem sutis –, estreou há quatro anos. E, desde então, muita gente me perguntava sobre o livro. Daí resolvi fazê-lo em um formato bem aproximado ao da literatura de cordel, no que diz respeito ao tamanho, ao uso da xilogravura...”.

Pererê entende que o cordel praticamente sugere uma melodia. “Você quase consegue ouvir o sotaque por trás de cada estrofe, não é uma coisa que está presa ao papel. E são histórias da cultura popular, o encontro de figuras destemidas – São Jorge contra o Dragão, por exemplo. Além da métrica, que é muito bonita, o enredo é feito para atingir um ápice, mexer com a emoção. Dentro da minha música, também busco esse lugar. E se nela, posso transitar por vários gêneros, posso ir ao rock, ao blues, ao samba... Mas esse pé no popular, o sagrado na cultura mineira e essa herança africana, sempre vão falar mais alto”. 

Pererê também enfatiza que a adesão de mineiros ao cordel é “um jeito de quebrar barreiras”. “Você pensa: ‘Ah, não vou fazer! Isso é do Nordeste, e sou mineiro. Só que aí você não absorve uma estética que vem no Nordeste e absorve a que vem dos EUA, por exemplo! E, na minha opinião, temos que ficar mais atentos às maravilhas do Brasil, para as quais a gente pode quebrar as barreiras. Foi o que quis fazer, com um texto falando das coisas de Minas, mas que acabou sendo também uma homenagem ao cordel”.

No traço
Embora não seja mineiro (nasceu no Piauí), foi entre as montanhas que o artista visual Rogério Fernandes, 47, teve seu nome projetado nacionalmente. Assinando artes de rua que ganham admiradores por toda a cidade, ele não nega que o cordel tenha sido uma influência em seu traço. “Primeiramente, porque sou nordestino, de pai pernambucano e mãe maranhense. Passei as férias da minha infância cruzando o Nordeste de carro, da casa de uma avó para outra. E neste percurso, meus pais paravam em muitas cidades, onde haviam grandes feiras, como em Caruaru. Aquilo me impressionava demais”, relembra. 

Na verdade, a mente do então menino não registrava só a literatura de cordel, mas outras manifestações, como as bandas de pífanos. “Mas do cordel, em casa sempre tínhamos muita coisa, quadros, azulejos. E, claro, os livros”. Fernandes ressalta os toques de realismo fantástico das histórias, além das pinceladas de humor. “Cresci com aquilo e, mais tarde, foi aflorando no meu trabalho”. Hoje, ele diz que seu trabalho não é mais tão ligado ao cordel. “Mas alguns conceitos ainda estão presentes. No cordel, você pode misturar seres, pessoas e épocas diferentes no mesmo caldeirão artístico, e, dali, resultar uma obra de arte”.

Versos cantam nossa história e nossa gente

A literatura de cordel é fruto da conexão entre as tradições orais e escritas presentes na formação social do Brasil e tem vínculos com as culturas africana, indígena, europeia e árabe. São folhetos, pequenos livros, geralmente em xilogravura, que são pendurados em varais expostos em via pública, em feiras ou grandes aglomerações, onde ficam à venda – daí, aliás, vem o nome cordel. Inserido na cultura brasileira no final do século XIX, é um gênero literário feito em versos, mas cuja métrica é bem distinta da dos poemas, acadêmicos, tradicionais. Tem uma linguagem muito próxima à coloquial e uma raiz forte no humor, na ironia.

Herança de outras culturas, encontrou no Brasil terreno propício, como explica Reinaldo Maximiano, pesquisador de literatura e teledramaturgia. “São formas, apropriadas aqui, encontraram uma força singular, talvez porque tenhamos uma tradição forte de história oral. A força da literatura de cordel está justamente no fato de não ter métrica acadêmica, não ser erudita, mas oralizada e coloquial. São formas de contar histórias e assim são repassadas de geração a geração”.

Embora tenha na região Nordeste o seu maior e mais tradicional polo de produção, em Estados como Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, espraiou-se por todo o país, inclusive como referência para outras manifestações artísticas além da literatura. Agora, com o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, passa a ter direito a ações de salvaguarda que vão garantir sua ampla promoção, pontua o coordenador geral de identificação e registro do Iphan Deyvesson Gusmão.

“As ações ainda vão ser definidas em detalhes a partir de agora, mas o processo de pesquisa até aqui já indicou algumas condutas. Uma delas é bastante reivindicada pelos cordelistas, que é a conservação e divulgação dos acervos, principalmente os mais antigos, que estão em bibliotecas especializadas. Outra é a realização de encontros de cordelistas, que existem em várias regiões, para que possa haver momentos de trocas entre eles”, diz.
São ações que, no fim das contas, vão garantir que essa forma de expressão se mantenha viva. “Precisamos assegurar que novos talentos apareçam, novas histórias aconteçam. Vivemos um momento pulsante nessa cultura e o cordel, por mais que venha de um processo bastante tradicional, não é algo datado, ainda tem inserção presente”, frisa Reinaldo Maximiano. “É um universo vasto de criação que podemos preservar ou perder, e se em 2018 provamos que ainda não somos suficientemente bons na preservação da nossa memória, haja visto um evento como o recente incêndio no Museu Nacional, isso é, de alguma forma, consolador”.

Atuante na seara da preservação da literatura de cordel desde que foi fundada, em 1936, a Lira Nordestina – antiga Tipografia São Francisco – ganhou um importante aliado com o título de patrimônio. Localizada em Juazeiro do Norte, no Ceará, é um dos espaços mais antigos e famosos do Brasil em termos de produção de cordel e xilogravura. Hoje associada à Universidade Regional do Cariri (Urca), é gráfica, ateliê, museu, espaço de oficina e pesquisa, além de outras atividades relacionadas ao cordel.

Diretor artístico da instituição, José Lourenço trabalha com cordel há quase 40 anos e comemora o marco na história da manifestação cultural, mas quer ver os efeitos de fato. “É a nossa vivência, vivemos o dia a dia com cordel e xilogravura, isso para nós é um sonho. É uma felicidade enorme, parece que acendeu uma luz. Agora, esperamos que ações sejam feitas de fato e não fique somente no ‘oba oba’”, ressalta.

Nova geração
Quem também celebrou a conquista foi um dos mais novos representantes da literatura de cordel: o poeta João Neto, de apenas 9 anos. Morador da cidade de Equador, no Rio Grande do Norte, o menino tem quase 60 mil seguidores em diferentes redes sociais e faz sucessos declamando poesias suas e de outros autores.

Seus primeiros passos foram inspirados por outro cordelista da nova geração, Bráulio Bessa, 32. Ao vê-lo num vídeo declamando o poema “Cheiro no Cangote”, há cinco anos, João imediatamente se encantou e, após poucas repetições, já era capaz de declamá-lo também. Além de Bráulio, ele tem como ídolos Patativa do Assaré (1909-2002), Ariano Suassuna (1927-2014), Tiago Monteiro, Souza Filho, Antônio Francisco Teixeira de Melo, entre outros.

E ele também já inspira outras crianças. “Outro dia, no fim da aula, durante o xadrez, um menino me disse que também sabia declamar e que se inspirou em mim. Já soube também de um menino chamado Moisés, de outra cidade, e a minha amiga Clara Bezerra, que é autora de alguns poemas”, conta.

João Neto espera que o título de patrimônio ajude o cordel a chegar a ainda mais pessoas. “Estou muito feliz pelo reconhecimento. Espero que o cordel seja vendido com mais frequência, seja mais valorizado, porque não é tão reconhecido como a poesia tradicional e os poetas do Norte e Nordeste não são tão conhecidos quanto os de outras regiões. E sobre a minha poesia o que eu mais quero é espalhá-la e espalhar a cultura nordestina pelo mundo inteiro”, afirma.

A mãe de João Neto, Alyne Paula da Silva Gomes, faz gosto que o menino tenha esse desejo. “Espero que ele siga no caminho voltado para uma cultura valorizada, que perceba que ser nordestino não é feio, que nosso modo de falar não é esquisito, é só a nossa característica. E que possa escrever seus poemas no futuro. Estamos planejando publicar um em breve, ele está escrevendo e já tem 16 estrofes, cumprindo todas as regras. Espero que ele leve nossa cultura para o mundo como deseja e que seja um espalhador de cultura”.

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