A fé, antes restrita ao campo da devoção, passou a orientar o que se consome, de quem se compra e até como se comunica. O estudo Gospel Power, conduzido pela Estúdio Eixo em parceria com a Zygon, mostra que o público evangélico já movimenta R$ 21,5 bilhões por ano no País, transformando-se num dos vetores mais relevantes da economia criativa.
Segundo o levantamento, 58% dos evangélicos afirmam que a fé influencia diretamente suas decisões de compra, enquanto 52% dizem não se sentir representados pela publicidade atual. Essa lacuna abre espaço para um varejo que reconhece a religiosidade como parte da identidade cultural do consumidor.
O fenômeno se amplia na medida em que o perfil religioso brasileiro muda. O último Censo do IBGE, de 2022, indica que os evangélicos já representam 26,9% da população, contra 9% em 1991. A base católica continua majoritária, mas perdeu espaço. Caiu de 65,1% para 56,7% em doze anos. A nova configuração da fé no Brasil se reflete diretamente nas vitrines, nas campanhas e nas estratégias de posicionamento de marca.
Expressão espiritual
Entre os segmentos que mais crescem está o de joias religiosas. Só no Brasil, o mercado de joalheria movimentou cerca de US$ 3,59 bilhões em 2024, segundo a consultoria Mordor Intelligence, e deve chegar a US$ 5,34 bilhões até 2029, com taxa média anual de crescimento de 8,3%. Dentro desse universo, as peças de apelo espiritual ganham espaço pela simbologia e pelo vínculo emocional.
A Convex Joias é um exemplo claro dessa tendência. A marca viu as vendas da linha religiosa crescerem 8% no último ano. Medalhas, escapulários, terços e anéis dedicados a santos se tornaram itens de uso diário, e não apenas presentes ou acessórios litúrgicos. No mês de outubro, quando se celebra Nossa Senhora Aparecida, essas peças respondem por metade das vendas da categoria.
De acordo com o CEO Rinaldo Monaco, trabalhar com joias religiosas é uma forma de aliar estética e devoção. “Nossas peças traduzem um vínculo emocional com a fé de cada cliente. São símbolos que representam tradição e modernidade ao mesmo tempo”, disse em entrevista recente.
Fé, estilo e pertencimento
O movimento é mais amplo do que o setor de joias. Ele atravessa moda, beleza e conteúdo digital. A chamada “gospel economy” engloba desde vestuário de inspiração cristã até plataformas de ensino bíblico e turismo religioso. Jovens evangélicos têm redefinido o consumo ao incorporar referências globais à estética de fé, dando origem ao conceito de “Gospel Premium”, que mistura propósito, design e pertencimento.
A moda modesta, voltada para o público que busca roupas discretas sem abrir mão de estilo, é um dos fenômenos mais visíveis. Marcas autorais e influenciadores ligados à fé têm ampliado presença no Instagram e no TikTok, atraindo audiências que enxergam na religião uma forma de autoexpressão. O entretenimento evangélico também se transformou: antes restrito à música e à pregação, agora ocupa o espaço do lifestyle.
Em Minas Gerais, o movimento também se reflete nos números. O estado registrou crescimento de 8,6% no número de comércios de artigos religiosos, passando de 152 para 165 estabelecimentos em um ano.
Mercado sensível, mas promissor
A comercialização da fé exige cuidado. Especialistas em comportamento e consumo alertam que, embora o potencial econômico seja enorme, o risco de banalização é real. Símbolos religiosos têm peso cultural e afetivo, e o público rejeita abordagens superficiais. A autenticidade se tornou o principal ativo de quem atua nesse nicho.
Outro desafio é compreender as diferenças entre as várias expressões religiosas. O crescimento evangélico ocorre em paralelo à resistência e à retomada de práticas afro-brasileiras, que também movimentam o varejo com artigos litúrgicos e objetos de devoção. Isso reforça a diversidade da espiritualidade brasileira e exige que o varejo fale com múltiplos códigos, sem impor visões únicas.
Ainda assim, os números são expressivos. Segundo a Nuvemshop, lojas físicas de artigos religiosos têm faturamento médio entre R$ 30 mil e R$ 70 mil mensais, e a procura online cresce em datas como Páscoa, Círio de Nazaré e Dia de Nossa Senhora Aparecida. Na internet, o comportamento de busca mostra aumento anual de dois dígitos por termos como “joia religiosa”, “escapulário masculino” e “presentes de fé”.
Teologia da prosperidade como motor de consumo
Entre parte dos evangélicos, a chamada teologia da prosperidade reforça uma relação direta entre fé, sucesso e consumo. Essa vertente, que se popularizou nas últimas décadas, prega que a bênção divina também se manifesta em conquistas materiais, algo que transformou o comportamento de parcela significativa dos fiéis e influenciou o próprio modelo de negócio das igrejas.
Grandes denominações neopentecostais investem em templos monumentais, com áreas VIP, assentos numerados, espaços climatizados e infraestrutura comparável a casas de show. O ambiente de culto se aproxima do entretenimento, e o consumo passa a fazer parte da experiência religiosa, seja pela compra de produtos oficiais, como livros, CDs, camisetas e objetos ungidos, seja pelo fortalecimento de marcas pessoais de líderes espirituais.
Essa estética da abundância dialoga com o mercado. O discurso de prosperidade legitima o desejo de ascensão econômica e dá origem a um consumidor que associa fé a conquista. O resultado é uma economia religiosa em que ostentar o que se tem não contradiz a espiritualidade, mas a confirma. O público que consome sob o signo da fé quer produtos que expressem não só devoção, mas também realização.
Economia das religiões afro-brasileiras
O consumo religioso no Brasil não se limita ao universo cristão. As religiões de matriz afro-brasileira, como Candomblé e Umbanda, também movimentam uma cadeia produtiva própria, estruturada em torno do simbolismo, da liturgia e da identidade cultural. Diferente de outros segmentos religiosos, o ato de comprar não é apenas escolha de consumo, mas parte integrante do ritual.
Um estudo apresentado no Encontro Anual da Anpocs mostra que os adeptos dessas tradições adquirem produtos a partir de aconselhamento espiritual prévio, muitas vezes orientado por pais e mães de santo. O que se compra depende do orixá, da cor, do material e da finalidade ritual.
Ateliês de roupas litúrgicas, especialmente no Sul e no Sudeste, vêm profissionalizando a confecção de saias, panos e acessórios para orixás. Essa formalização deu origem a microempreendimentos voltados ao público religioso, muitos deles operando também no e-commerce, em nichos que seguem em crescimento.
Franchising de fé
O modelo de franquias se tornou uma das principais formas de expansão do varejo religioso no Brasil. Redes especializadas em artigos devocionais, antes restritas a lojas independentes, passaram a operar sob gestão padronizada e com presença em centros comerciais. A estratégia permitiu ampliar o alcance geográfico e profissionalizar a operação de um setor que mantém demanda estável ao longo do ano.
Entre as marcas em atividade estão a Santo Santo Santo, com investimento inicial a partir de R$ 198 mil e previsão de retorno entre 18 e 22 meses, e o Espaço Católico Divino Amor, que exige aporte de cerca de R$ 328 mil e possui mais de cinquenta unidades em funcionamento no país. Ambas trabalham com mix que inclui imagens, acessórios, presentes e produtos inspirados em devoção.